Big Tech força redes sociais alternativas a adotarem moderação

Para permanecer online, plataformas que ignoravam discurso violento e de ódio sob mantra da liberdade de expressão, populares entre grupos da extrema direita, passam a regular conteúdo mais ativamente
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O Parler, rede social que por alguns poucos meses foi uma das principais plataformas da extrema direita nos Estados Unidos, voltou a ver a luz do dia em meados de fevereiro, depois de mais de um mês às escuras, praticamente offline. Saiu do ar em 11 de janeiro não por iniciativa própria, mas principalmente pela decisão da Amazon de não mais abrigá-la em seus servidores. Não bastasse isso, Google e Apple removeram o Parler de suas lojas de aplicativos -- as maiores do mundo.

A plataforma, que ganhou território junto à direita alternativa por causa do seu posicionamento inflexível acerca de liberdade de expressão, voltou ao ar após transferir seu domínio para o Epik, serviço que também abriga o site Infowars, a rede social Gab e que por algum tempo hospedou o fórum 8Chan.

O 8Chan — hoje chamado de 8Kun — é um site que abriga fóruns da extrema-direita e surgiu como uma alternativa mais ‘desregulada’ ao 4chan, rede também popular entre grupos da extrema-direita e berço da teoria de conspiração QAnon. Desde 2019, quando posts do fórum foram ligados a um tiroteio em El Paso, o 8Chan luta para se manter online, buscando por empresas que protejam o site de ataques. O contrato mais recente, com empresários russos, foi suspenso após o ataque ao Capitólio dos EUA, em janeiro.

Em seu retorno, o Parler trouxe diretrizes de comunidade atualizadas, nas quais se compromete a remover conteúdos que incitem crimes, delitos civis ou outros atos ilegais -- algo tacitamente tolerado antes de ser punido pelas Big Techs. Ou seja, aceitou moderar conteúdo.

Embora ceder à moderação de conteúdo não esteja no objetivo de muitas redes sociais menores que se propõem a defender qualquer tipo de expressão pessoal, mesmo que violento e danoso para a sociedade, o movimento passou a ser uma forma de sobrevivência à desplataformização

Jargão do meio tecnológico que dá conta do processo de tirar de pessoas, grupos ou empresas o acesso a plataformas ou recursos para se criar e manter plataformas.

para esses 'arautos da liberdade de expressão' no mundo dominado pelo poder econômico de um punhado de empresas gigantes, especialmente na sequência dos ataques de militantes de extrema direita ao Congresso norte-americano, em 6 de janeiro deste ano -- mas antes disso também.


É importante porque...
  • A desplataformização vem crescendo como assunto nos últimos meses e pode impactar a forma como produzimos e consumimos conteúdo nas redes sociais.
  • Há um consenso entre grandes empresas de tecnologia de que liberdade de expressão não é a mesma coisa do que promover violência e discurso de ódio, especialmente após ataque ao Congresso dos EUA em 6 de janeiro de 2021.
  • Mostra o poder das Big Tech na sobrevivência de iniciativas menores.

Mesmo que breve, o desfalque do Parler foi suficiente para provocar uma migração de usuários para outras redes. O Gab, popular entre a extrema direita norte-americana banida da Google Play Store desde 2017 e nunca aceita pela Apple Store, disse ter tido um fluxo de 10 mil novos usuários por hora na esteira de bloqueios de perfis no Twitter, de vídeos no YouTube e do colapso do Parler. Foram 33 milhões de novos usuários em 30 dias, segundo Andrew Torba, CEO da empresa.

Mas o crescimento já era notável antes: na segunda semana de novembro, enquanto os Estados Unidos aguardavam a decisão sobre seu próximo presidente, o Gab registrava número de acessos equivalente a todo o mês de outubro.

Esse fluxo de usuários veio a um custo. Sanções aplicadas pelas Big Techs a redes menores como Gab e Parler podem ser a diferença entre a continuidade de um negócio, seu colapso total ou, no meio termo, o desempenho ideal.

A Amazon possui um terço do mercado de serviços 'nuvem' do mundo -- como servidores e bancos de dados, fundamentais para aplicativos e redes sociais.

Combinadas, empresas do clube das Big Tech (incluindo Microsoft, Google, Oracle, entre outras) possuem 80% desse mercado. Ou seja, sem elas as opções ficam limitadas a serviços menores, que não possuem a mesma robustez necessária. Após o colapso do Parler, a imensa migração para o Gab fez com que a rede social ficasse inutilizável por mais de um dia devido ao limite de seus servidores.

Reprodução de tela de post de Torba na rede social Gab

Além disso, Apple e Google possuem os maiores sistemas operacionais do mundo, rodando em quase 100% dos smartphones. Se um negócio não está em suas lojas de aplicativos, resta ser acessado via navegador, o que diminui a adesão a esses serviços.

Por mais discreto que seja, a atualização nas políticas de moderação pode ser um aceno à Google, Apple e Amazon. "O boicote ao Parler foi generalizado e eles não conseguiram manter o serviço ativo sem ceder à necessidade de moderação", explicou Yasmin Curzi de Mendonça, pesquisadora do Centro de Tecnologia e Sociedade da FGV Direito Rio.

"Essas plataformas também precisam de outros servidores para prestarem seus serviços, para além da hospedagem nas plataformas de download, como acesso a provedores de e-mail e afins". - Yasmin Curzi de Mendonça, pesquisadora do CTS, ao Núcleo

Até redes sociais mais reticentes à moderação, como o Telegram, têm atuado para impedir que sua plataforma seja usada para incitação ao ódio, apesar de ter números de suspensões ainda irrisórios em comparação com ações de outras redes.

Desplataformização é possível?

Quão possível é a total desplataformização?

Os últimos dois meses mostraram que sempre há uma outra rede ou um outro site à espera para dar palco a um ator ou grupo banido de uma plataforma mainstream ou até para substituir uma rede que foi ela mesma desplataformizada.

Desplataformizar de vez é praticamente impossível, mas não é por isso que o esforço não deva ser feito, alertaram pesquisadoras ouvidos pelo Núcleo.

Há pesquisas sobre casos recentes -- como o esforço coordenado contra o Estado Islâmico (ISIS) -- que demonstram a efetividade de desplataformizar atores radicais, explica Letícia Cesarino, professora de Antropologia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Em 2018 e 2019, a Europol realizou dois 'Action Days' em coordenação com o Telegram para desmantelar articulações extremistas na plataforma.

Uma pesquisa do Centre for Research and Evidence on Security Threats (CREST), financiado pelo governo do Reino Unido, mostrou que as ações, em especial a de 2019, foram efetivas para desmontar a organização do ISIS no Telegram, mas que houve uma migração para outras plataformas.

"Não que esses grupos tenham sido permanentemente excluídos da internet, mas o simples fato deles serem colocados nesses cantos mais subterrâneos, serem empurrados para camadas mais subterrâneas da internet já é uma grande ajuda", explicou Cesarino.

Para ela, a necessidade de recrutar pode ser uma das explicações pelas quais aplicativos e redes da direita alternativa -- como Parler e Gab, e potencialmente, o Clapper -- não ganharam tração entre a direita bolsonarista no Brasil. "Eles podem até estar mais livres ali, mas ao mesmo tempo eles não têm como recrutar de forma tão extensiva como fizeram em 2018, por exemplo", disse a antropóloga, que desde as eleições presidenciais de 2018 pesquisa as redes de apoio a Bolsonaro.

A massa dos recrutamentos, segundo ela, ocorre quando o usuário está no WhatsApp ou Facebook e se depara com um tipo específico de conteúdo, seja organicamente ou recomendado por algoritmos.

BAIXANDO O TOM

Não foi só o Parler que voltou e baixou o tom visando a própria sobrevivência. Temendo punições e uma total desplataformização, redes sociais alternativas estão cedendo a pressões e implementando políticas de moderação em suas plataformas.

Uma delas  é o Clapper, que vem sendo classificado por veículos de tecnologia como 'clone conservador do Tik Tok'. A plataforma de vídeos curtos foi lançada em julho de 2020 com a promessa de zelar pela livre expressão -- as mesmas possibilidades que o TikTok, mas com menos interferência. Com essa premissa, a plataforma atraiu justamente quem se incomodava com o excesso de moderação que vinha sendo alardeado pelas plataformas mais mainstream.

Mas como forte evidência de que não é viável manter uma rede sem qualquer filtro de moderação num jogo que é ditado, em grande parte, pelas Big Techs, o Clapper anunciou há duas semanas que banirá permanentemente contas que estejam disseminando teorias QAnon de desinformação e anti-vacinas.

Para Edison Chen, CEO do Clapper, tais conteúdos vão contra a missão da rede social e também contra as exigências da Google Play e Apple Store. "Temos mais de 20 funcionários internos no time de Segurança para moderar conteúdo todos os dias", explicou Chen ao Núcleo por email.

"Nós percebemos que há alguns criadores de conteúdo conservadores buscando o Clapper devido ao fechamento do Parler ou por terem sido banidos de redes sociais mainstream". Mas todos que chegam ao Clapper são iguais, todos precisam seguir nossas diretrizes de comunidade. Se o vídeo for contra essas diretrizes, tomaremos ações" - Edison Chen, CEO do Clapper, ao Núcleo

Desde seu lançamento em julho do ano passado, o Clapper já foi baixado mais de meio milhão de vezes, sendo que boa parte dos downloads ocorreram neste último mês. Por enquanto, os mercados-alvo do aplicativo são EUA, Reino Unido, Austrália e Canadá, mas o plano é de uma expansão global, contou o CEO. Ele disse não poder disponibilizar números de usuários brasileiros que estejam ativos na plataforma.

Chen rejeitou o título de plataforma de 'livre expressão' e também o rótulo de "segundo Parler", nas palavras dele mesmo. "Somos uma plataforma de compartilhamento da vida real que usa algoritmos de 'oportunidades iguais' para mostrar, através de curtos vídeos e livestreams, comunidades de pessoas normais, reais e diversas", disse o executivo por email.

CONTEXTO

Outro aplicativo que precisou aderir melhor à moderação foi o Discord. Até 2017, era um dos apps de mensagens e grupos preferidos da extrema direita, mas após os protestos violentos de nacionalistas brancos em Charlottesville, a empresa passou a atuar mais ativamente para frear o discurso de violência, e hoje conseguiu se desvencilhar desses grupos. À época, um jornalista do New York Times ouviu de usuários banidos pela moderação do Discord que era hora de deixar aquela rede e buscar outra plataforma mais 'amigável'.  Em dezembro de 2020, o Discord lançou inclusive um tutorial de moderação.

A plataforma de vídeos Rumble, fundada em 2013 mas que recentemente vem sendo adotada como o YouTube da direta, já deixou bem claro que "possui políticas estritas de moderação quando se trata de incitação de violência, conteúdo ilegal, racismo, antisemitismo e promoção de grupos terroristas", segundo apurou o site Mashable.

Em novembro, Chris Pavlovski, CEO da Rumble, disse ao New York Times que apesar das proibições da plataforma a certos conteúdos,  separar informação de desinformação ou limitar determinados discursos não fazia parte do negócio. Ao Washington Post, ele reiterou que a Rumble é uma plataforma aberta que não se envolverá em debates políticos ou de opiniões.

Nas diretrizes de comunidade, a Rumble diz que não permitirá em seu site conteúdo que promova ou forneça instruções sobre atividades ilegais, incitem danos ou injúrias a qualquer grupo, indivíduo ou animal. A plataforma também diz que não permitirá conteúdos que ensinam como montar ou utilizar bombas, granadas ou armamento de qualquer tipo. Não há nenhuma menção explícita a conteúdos sobre vacinação ou sobre o coronavírus.

O Núcleo descobriu que, em algum momento entre agosto e setembro de 2020, a Rumble atualizou suas políticas de comunidade e retirou da lista de conteúdos a seguinte frase: "conteúdos ou materiais que acreditamos que sejam grosseiramente ofensivos à comunidade online, incluindo mas não limitado a, expressões flagrantes de intolerância, preconceito, racismo, ódio e profanidade".

Na versão atualizada, que vigora até hoje, a plataforma também retirou um trecho em que dizia "ativamente auditar e aprovar conteúdo que seja exibido no Rumble.com", mas que caso usuários se deparassem com conteúdos ofensivos ou inapropriados, poderiam imediatamente entrar em contato com a rede por email para que o conteúdo fosse removido.

Após o fluxo de 4 milhões de novos usuários em janeiro de 2021, o site MeWe -- que se vende como sem anúncios ou rastreamento e patrono da liberdade de expressão -- reafirmou à rádio norte-americana NPR que vai "colocar limites" no que as pessoas podem falar na plataforma.

COMO FIZEMOS ISSO

Os pedidos de comentário ao Clapper foram feitos por email, com resposta do CEO Edison Chen.

Foram entrevistados especialistas para entender as repercussões de políticas de moderação e desplataformização.

Os dados do gráficos sobre downloads foram obtidos nesta reportagem do Axios, que recebeu as informações diretamente do Apptopia. Solicitamos esses dados ao Axios, mas não recebemos retorno.

Sobre a apuração da política do Rumble, com o Wayback Machine encontramos versões anteriores das políticas de comunidade do Rumble que foram arquivadas. Em seguida, cruzamos as versões usando a ferramenta DiffChecker. Para determinar que a alteração aconteceu entre agosto e setembro, cruzamos as versões a partir de maio de 2020 até a atual, reduzindo o intervalo até ver que a alteração aconteceu entre as versões arquivadas dos dias 17/08/2020 e 23/09/20.

Por se tratar de um tema amplamente documentado na imprensa, especialmente a norte-americana, e por não trazer acusações nem fatos novos, o Núcleo não foi atrás de todas as redes sociais aqui citadas.

Reportagem Laís Martins
Edição Sérgio Spagnuolo
Arte Rodolfo Almeida

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