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Sobreviver no jornalismo sem o canhão das Big Techs

Grandes empresas de tecnologia puxaram o tapete de veículos de imprensa depois de terem empurrado seus modelos de distribuição

Sobreviver no jornalismo sem o canhão das Big Techs
Arte: Aleksandra Ramos

As maiores redes sociais não gostam de jornalismo. Embora já tenham sido relativamente abertas ao noticiário, uma a uma foram se fechando nos últimos cinco anos. 

Jornalismo é inconveniente, porque investiga e traz à tona fatos e informações que incomodam empresas, pessoas influentes e muitos usuários que estabeleceram seu próprio sistema de realidade paralela. Além disso, um click para um site externo é tempo a mais que as pessoas não passam fazendo scroll infinito e comprando óculos de sol em posts patrocinados. Por fim, jornalismo sério e informativo raramente gera números monstruosos de engajamento – o único combustível que importa para essas plataformas.

Jornalismo é ruim para os negócios das plataformas.

Mas tem uma Big Tech que, pelo menos até pouco tempo atrás, ainda via vantagem em ajudar na distribuição do jornalismo: o Google.

O Google sempre foi uma das principais fontes de tráfego para sites de veículos de imprensa no mundo todo, a partir de uma dinâmica muito simples: o usuário entra no buscador, procura o que quer e, frequentemente, a plataforma apresentava links relevantes sobre o assunto para o usuário clicar. 

Essa simples transação basicamente transformou a distribuição de notícias na internet e moldou boa parte do noticiário moderno. Veículos contrataram profissionais bem específicos e passaram a fazer conteúdo exclusivamente para rankear bem no algoritmo do Google, implementando uma série de parâmetros conhecidos como Search Engine Optimization, ou SEO. 

Muitas organizações começaram a produzir conteúdos que, de outra forma, não produziriam, como avaliações de impressoras, fofocas de celebridades, conteúdos de violência gráfica, entre outras coisas. Muitos veículos ficaram dependentes dessa transação, mas pelo menos o Google levava o tráfego necessário para transformar centavos em dólares, que, por fim, ajudavam a manter as luzes acesas.

Mas a relação comercial entre Google e jornalismo começou a azedar pra valer em algum momento nos últimos 12 meses, provavelmente por causa de novos recursos de inteligência artificial que a gigante da internet começou a colocar em seus resultados de busca.

Poucas são as redações que não estão reclamando de uma brusca queda no volume de audiência de seus sites por conta de uma queda de referências de buscas do Google. Os números variam bastante, mas organizações jornalísticas podem ter mais de 40% de sua audiência oriunda de algum produto do Google (principalmente busca e Discover).

Uma reportagem do Wall Street Journal ouviu líderes de quatro grandes veículos dos EUA (Business Insider, Washington Post, HuffPost e The Atlantic) cuja audiência tem caído bastante por conta dessas mudanças nos produtos do Google.

Pra fechar a rodada de evidências, uma pesquisa do Pew Research Center constatou que usuários que foram servidos pelos resumos de IA do Google clicaram metade das vezes em links em relação àqueles sem o recurso.

Em maior ou menor escala, essa seca está vindo para assombrar todo mundo. 

Aqui no Núcleo temos visto uma queda expressiva de audiência em todos os cantos. Felizmente, não somos um veículo orientado por pageviews, número de seguidores ou likes. Esse tipo de coisa não é, nem nunca foi, nossa pegada, mesmo que tenhamos testemunhado significativo crescimento de alguns desses números nos últimos anos. 

Embora gostemos de ter nosso trabalho visto pelo maior número possível de pessoas (acho que ninguém no jornalismo é imune a isso), a grande verdade é que o Núcleo tem uma, e apenas uma, métrica principal de sucesso: gerar impacto e ser útil para nossa comunidade. 

Por exemplo: um texto que fiz ensinando as pessoas a criar uma página pessoal de currículo ajudou a Nathália a fazer um site só dela, do zero. Teve aquela investigação liderada pela Sofia Schurig que levou a Secretaria Nacional do Consumidor a abrir um procedimento de monitoramento sobre a Meta por conta de conteúdo de exploração infantil na plataforma. Ou quando uma investigação nossa uniu 70 organizações em repúdio à forma como a empresa de Mark Zuckerberg tratou pesquisadores do NetLab. Tem dezenas de exemplos aqui, se você quiser saber.

Isso é bom pra nossa missão, claro, mas não é apenas porque somos bonzinhos. Isso é bom pros negócios. Nossa base de assinantes cresceu 303% em 12 meses. Esperamos, em cinco anos, que assinaturas representem 50% do nosso orçamento (atualmente está em uns 8%). 

Fundamentalmente, dentre várias coisas relevantes para nosso trabalho, comunidade é o que importa pra gente. 

Mas não é isso que importa para as Big Techs. 

Essas grandes empresas de tecnologia, principalmente, mas não apenas, Google, Meta e TikTok, primeiro ficaram amiguinhas do jornalismo, fornecendo treinamentos, viagens, prêmios e, muitas vezes, até dinheiro (em forma de grants e projetos) para organizações jornalísticas. Nós mesmo aqui no Núcleo fomos beneficiados por isso algumas vezes (é preciso deixar claro que isso nunca afetou nossa liberdade editorial, basta ver como somos críticos a essas empresas. Saiba mais aqui sobre nossas políticas.)

Percebendo que jornalismo sério dá trabalho, essas companhias começaram a se distanciar de redações, ficando próximas apenas de quem não dá trabalho ou é um canhão de audiência. Mas mesmo para grandes veículos a vida junto às Big Techs também também tem piorado. Qual outro motivo justifica o processo no CADE contra o Google sobre abuso de poder no mercado de busca e notícias, que contou com empenho da Associação Nacional de Jornais (ANJ) para tentar dar uma dentada na Big Tech (ainda sem sucesso).

Ao longo da última década, muitas empresas de jornalismo passaram a depender cada vez mais das ferramentas de distribuição criadas por essas empresas. Em vez de ter jornalismo como negócio, muitos veículos passaram ou a fazer conteúdos inócuos e bobinhos que se encaixam nos parâmetros de SEO ou a publicar coisas tão horrendas e divisivas que se tornam conteúdos irresistíveis para algoritmos de redes sociais sedentos por engajamento. 

Em 2022, fui convidado para jantar na casa de um jornalista, na qual vários outros jornalistas estavam presentes. Lembro como se fosse ontem, quando um deles disse que a maior parte de sua equipe de mais de 30 pessoas servia quase exclusivamente para escrever artigos que performavam bem com SEO. Em vez de escrever o que importa, escreviam para afagar algoritmos. Não julgo, é o que pagava a conta deles, e agora eles estão à mercê dos novos rumos do Google.

Ao aceitar essa dependência, muitos veículos passaram também a ficar à mercê de mecanismos sobre os quais não tem o menor controle. As mudanças no algoritmo do Facebook, no começo de 2018, por exemplo, foram muito prejudiciais para diversos veículos no mundo todo, o que levou até a Folha de S.Paulo a parar de publicar na plataforma, só para voltar a postar por lá em 2021. 

Depois que Elon Musk assumiu o controle do Twitter, em out.2022, e transformou uma das redes sociais mais propícias para jornalismo em aterro sanitário virtual que reduziu drasticamente o alcance de links de notícias, muitos jornalistas e muitas redações insistiram em continuar publicando por lá, receosos em perder a grande contagem de seguidores que amealharam.

Daí veio o TikTok, que passou a subsidiar departamentos inteiros dentro de algumas redações, basicamente terceirizando a moderação de conteúdo para jornalistas. O formato de vídeos curtos do TikTok criou uma nova aberração de conteúdo “jornalístico”: chupinhar vídeos de outros perfis, meter seu logotipo lá e colher likes com conteúdo alheio.

Distribuição de conteúdo virou engajamento, o mais distante possível de comunidade.

O bom jornalismo, que felizmente ainda existe, sempre consistiu em aliar a imprevisibilidade e importância dos eventos, a curadoria e investigação dos fatos e, principalmente, o registro dos acontecimentos. Pode acreditar que aqui no Núcleo ninguém gosta de investigar exploração infantil com inteligência artificial, isso é uma coisa horrenda. Mas é nossa missão mostrar o impacto disso, mesmo que apenas um punhado de gente vá ler.

Jornalismo frequentemente é baseado em interesse público, nem sempre interesse do público. Claro, se pudermos aliar as duas coisas, tanto melhor. No Núcleo temos o Garimpo, que tenta fazer exatamente isso. A gente também joga o jogo da captura de atenção, mas não somos apelativos, desonestos e desesperados por cliques.

Engajamento virou a moeda de troca entre Big Techs e redações, e, quando percebemos, boa parte do sucesso do jornalismo passou a ser medido pelo número de likes, não pela qualidade nem pelo impacto. 

E esse jogo é jogado nos estádios construídos e comandados pelas empresas mais ricas e poderosas da história da humanidade.

Sérgio Spagnuolo

Sérgio Spagnuolo

Jornalista e diretor do Núcleo. Em 2014, criou a agência de newstech Volt Data Lab. Foi Knight Fellow no ICFJ e diretor na Abraji, além de ter colaborado com vários veículos nacionais e internacionais

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