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PMs da Bahia divulgam rifas ilegais pelo Instagram

Com milhares de seguidores, os soldados Luan Matos e Diego Correa prometem prêmios em dinheiro e carros de luxo sem autorização do Ministério da Fazenda; sorteios só podem ser feitos por entidades beneficentes e não podem visar lucro 

PMs da Bahia divulgam rifas ilegais pelo Instagram
Arte por Aleksandra Ramos

O bordão “Ganhou? Aqui a gente entrega!” é habitual para quem acompanha os stories do soldado Diego Santana Correa de Oliveira, mais conhecido como Soldado Correa. Com mais de 1,4 milhão de seguidores, o policial militar da Bahia organiza e divulga rifas ilegais por meio do Instagram.

Parceiro de farda dele, o soldado Luan Ribeiro de Almeida Matos, o Soldado Matos, não fica para trás. Pelos stories para mais de 314 mil seguidores e por meio de um grupo no WhatsApp, o PM insiste para que você faça a sua “fézinha” a fim de disputar sorteios de prêmios que variam entre carros de luxo, motos, iPhone ou pagamento em dinheiro.

Ao longo de duas semanas, o Núcleo monitorou os perfis dos policiais que divulgam rifas desde 2023 na plataforma. O soldado Diego Correa admitiu que os sorteios que realiza não estão regularizados perante o governo. Já o soldado Matos não respondeu às tentativas de contato da reportagem.

A realização irregular de sorteios e rifas é comum, especialmente no Instagram, e já foi alvo de operações da polícia em diferentes regiões, inclusive na Bahia, por envolver suspeitas de golpes e lavagem de dinheiro.

Em 2021, reportagem do Núcleo foi uma das primeiras a mostrar a expansão dessa prática nas redes sociais, e logo depois houve a abertura de processos administrativos pelo Ministério da Fazenda.


É importante porque...

Rifas só podem ser realizadas por entidades filantrópicas, autorizadas pelo Ministério da Fazenda, e não podem visar lucro nem premiações em dinheiro;

A atividade é incompatível com a função pública de policiais, segundo especialistas;

Julgamento sobre a responsabilidade de redes sociais por conteúdo postado por seus usuários está parado no Supremo Tribunal Federal.


Nos termos de uso, o Instagram não permite que a plataforma seja utilizada para fazer “algo ilícito, enganoso, fraudulento ou com finalidade ilegal ou não autorizada”, mas não tem uma postura proativa e transparente quanto à fiscalização.

Uma conta pode ser derrubada por meio de denúncias de outros usuários ou porque o algoritmo pode ter identificado uma infração às normas, mas o critério ainda é nebuloso. 

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Contatada pelo Núcleo, a Meta disse que não vai comentar a reportagem.

Os dois policiais, além de seus perfis pessoais, têm contas reservas no Insta, nas quais também divulgam as rifas e também postam vivência de policial militar, com exibição de fardamento e armas e opiniões sobre ocorrências diversas. Eles ainda publicam vídeos com supostos ganhadores recebendo os prêmios.

Ambos estão na ativa e, segundo o Portal da Transparência do governo da Bahia, têm salário bruto de R$ 5,3 mil. 

Os sites dos soldados, “Ação de Ouro” e “Ação do Guerreiro”, têm páginas parecidas, com indicações dos prêmios por rifa mediante a realização de um cadastro e compra de número para sortear a partir de um centavo na maioria dos sorteios.

A “Ação de Ouro” está com o site registrado no CPF de Diego. Já a “Ação do Guerreiro” está vinculada ao CPF da esposa de Luan, Daiane Ribeiro Santana. 

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De acordo com a Lei 5.768/71, as rifas só podem ser realizadas por entidades filantrópicas, ou seja, sem fins lucrativos, com autorização do governo federal e não pode realizar premiações em dinheiro. Os números sorteados devem obedecer os resultados das loterias federais.

“Rifas que a gente vê comumente nas redes sociais, principalmente, sorteando itens de luxo, como carro e lancha, são ilegais e abrem um parâmetro até para questões de lavagem de dinheiro porque a lei veda esses sorteios para ganho patrimonial, como forma de obtenção de renda”, explica Tiago Rocha, advogado especialista em direito digital. 

Nem nos sites nem nas postagens feitas no Instagram, os policiais informam CNPJ de entidade a ser beneficiada pela rifa e os pagamentos nem quem está patrocinando os prêmios. No caso dos prêmios em dinheiro, o repasse é feito por eles mesmos, como pessoa física, quando mostram os comprovantes de ganhadores em publicações.

Rocha, que analisou as páginas e os perfis a pedido do Núcleo, apontou que essas já são indicações das ilegalidades.

Os policiais usam os resultados das loterias federais nos sorteios o que, para Rocha, busca simular legitimidade.

Como verificar se um sorteio é legal?

Uma das formas é identificar se a rifa informa o número de protocolo de autorização da Secretaria de Prêmios e Apostas, que é vinculada ao Ministério da Fazenda. No caso dos dois sites dos policiais, não há nenhuma informação do tipo.

Funcionários públicos

Outro agravante apontado por especialistas ouvidos pelo Núcleo é o fato de serem funcionários públicos exercendo essa atividade. A Emenda Constitucional 101/2019 permitiu que policiais militares acumulem cargos públicos remunerados apenas como docentes ou profissionais da saúde, desde que não haja incompatibilidade de horários, e que a função militar seja prevalente.

Já o Regimento Disciplinar da Polícia Militar da Bahia considera transgressão disciplinar o policial militar da ativa participar “de firma comercial, de emprego industrial de qualquer natureza, ou nelas exercer função ou emprego remunerado, exceto como acionista ou cotista, em sociedade anônima ou por cotas de responsabilidade limitada”. 

Na avaliação da diretora-executiva do Instituto Sou da Paz, Carolina Ricardo, pela maneira como as rifas estão sendo divulgadas, pode ser considerada uma atividade remunerada que é incompatível com a função de policial militar. “O policial não pode fazer ‘bico’”, afirma. 

Ela ressalta um conflito ético por ser um agente da lei divulgando uma rifa como um jogo de azar que pode viciar e também a postura de policiais em redes sociais.

“É uma atividade remunerada porque certamente o policial está ganhando em cima disso. É uma atividade que tem questões éticas e que usa um sistema de redes sociais em que ele explora esse capital simbólico de ser policial. Então, ele [o policial] tira vantagem disso para se autopromover”, diz Ricardo.

O advogado Tiago Rocha concorda. “É algo que pode manchar a conduta da polícia do Estado. Ainda que eles não estejam como policiais ali, mas como pessoas físicas, você bate o olho [no perfil] e vê que eles são da corporação. Então, é analisar essa questão da ética e disciplina do Código da Polícia Militar porque é algo que não dá ‘match’, não casa com a profissão”.

Diretrizes de redes

A própria PM da Bahia publicou, em 2022, uma portaria a fim de estabelecer diretrizes para o uso de redes sociais pela tropa.

Uma das proibições que não é seguida pelos perfis dos soldados é “expor qualquer fardamento, equipamento, instalações, veículo, armamento, símbolo ou imagem de identificação visual da PMBA de forma indevida e/ou sem autorização”. 

Em algumas postagens, por exemplo, o soldado Luan Matos usa fotos fardado como policial ou de equipamentos da polícia para um jogo: fazer pix para quem encontrar figuras de emojis na imagem. Além disso, também promove jogo para girar uma roleta virtual para prêmio em dinheiro.

Para Carolina Ricardo, do Sou da Paz, a portaria é uma regulamentação importante, mas “o desafio é saber se e como a polícia da Bahia está fiscalizando”.

A responsabilidade das redes sociais em situações como essa está em discussão no Supremo Tribunal Federal, uma vez que o artigo 19 do Marco Civil da Internet determina que “o provedor de aplicações de internet somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente, ressalvadas as disposições legais em contrário”. 

São quatro processos sobre o tema, sendo um deles sobre a constitucionalidade desse artigo, a possibilidade de retirada de conteúdo ofensivo sem decisão judicial, a suspensão do serviço em caso de descumprimento de ordem judicial para quebra de sigilo de dados e a validade de decisões sobre o bloqueio do WhatsApp.

Em dezembro do ano passado, o presidente do STF, ministro Luís Roberto Barroso, defendeu que as plataformas devem ser responsabilizadas caso deixem de tomar providências para remover conteúdo de teor criminoso. O julgamento está suspenso após o ministro André Mendonça pedir vista.

"Sou honesto e nunca roubei ninguém"

O Núcleo tentou contatar os policiais por meio dos números de WhatsApp disponíveis nos sites das rifas. O correspondente à “Ação de Ouro” disse que não realiza rifas, mas sim sorteios, e depois outro número, do próprio Soldado Correa, ligou para a reportagem.

“Partir pra legalização é praticamente entregar 90% dos meus lucros ao governo, é o que eu sou totalmente contra”, alegou.

Ele disse que é honesto e nunca roubou ninguém.

“Eu não ligo muito pra esse negócio de regra, não, porque eu vejo muita regra e pouca gente seguindo, né? Eu sigo mais assim a Bíblia, os dez mandamentos, a Constituição Federal é 500 e não sei quantas páginas ou mais. Eu vejo tanta roubalheira no país. Eu acho que se a gente seguisse mais a Bíblia, que é menos regra, e andasse pelo certo, a gente não precisaria de tanta gente, de falso moralista. querendo dar uma de certinho em cima dos outros”.

Diego Santana Correa de Oliveira, o Soldado Correa

Ele alegou que não faz rifa e sim título de capitalização e está em contato com uma empresa de capitalização para regulamentar os sorteios. Mas não quis dizer qual é a empresa e nem a origem dos prêmios que sorteia. Título de capitalização, que permite premiação em dinheiro, depende de autorização da Superintendência de Seguros Privados (Susep), que é ligada ao Ministério da Fazenda. 

A portaria 656/2022 prevê uma série de regras para a realização desse tipo de sorteio, o que envolve a transparência sobre a empresa que faz a capitalização, o tipo de título, o número do processo administrativo de autorização, informação de que menores de 16 anos não podem comprar títulos, etc. Nada disso consta no site nem nas postagens do Instagram do policial.

O Núcleo questionou se o fato de ele ser um agente da lei exercendo uma atividade ilegal não é incompatível com a função e citou o Regimento Disciplinar da PM da Bahia. Correa alegou, equivocadamente, que não tem nada na norma que o proíba de fazer os sorteios.

“Eu tô esperando a polícia me punir aqui. Se ela quiser me demitir, ela até me demite, que eu não dependo do salário dela hoje, graças a Deus. A minha história na polícia foi tomando tiro e matando vagabundo. A minha história na polícia é essa aí, não pego dinheiro de ninguém, não roubo ninguém”, disse.

Já o número correspondente à “Ação do Guerreiro” disse que passaria o pedido de entrevista para o Soldado Matos, mas não retornou até a publicação.

A reportagem procurou as assessorias do Ministério da Fazenda, do Ministério Público da Bahia e da Polícia Militar da Bahia. Até o momento de publicação deste texto, apenas a PMBA retornou ao contato do Núcleo.

Leia na íntegra a nota da PMBA

A Polícia Militar da Bahia (PMBA) informa que, ao tomar conhecimento de publicações em redes sociais que envolvam a divulgação de rifas por parte de integrantes da corporação, adota as providências administrativas cabíveis, em conformidade com os regulamentos disciplinares e com os princípios que regem a atividade policial militar.

A conduta é objeto de apuração formal, mediante instauração de procedimento administrativo sumário ou sindicância, com o objetivo de verificar eventual transgressão à legislação vigente, especialmente quanto à vedação de práticas que possam comprometer a ética, a imagem institucional e a disciplina militar.

Durante a apuração, os policiais eventualmente envolvidos são apresentados à respectiva comissão de investigação, assegurando-se o contraditório e a ampla defesa, conforme preconizado pela legislação administrativa e disciplinar aplicável.

Paralelamente, todos os fatos são encaminhados à Corregedoria Geral da PMBA para ciência e eventual acompanhamento ou adoção de outras medidas no âmbito correcional, conforme o grau de relevância e impacto da conduta em apuração.

A PMBA reafirma seu compromisso com a legalidade, a disciplina e a preservação da imagem da Instituição, atuando de forma transparente e rigorosa na apuração de qualquer conduta que se afaste dos padrões ético-disciplinares exigidos dos seus integrantes.

Reportagem Jeniffer Mendonça
Arte Aleksandra Ramos
Edição Alexandre Orrico

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Jeniffer Mendonça

Jeniffer Mendonça

Jornalista especializada na cobertura de segurança pública e direitos humanos. Possui pós-graduação em Estudos de Criminalidade e Segurança Pública pela UFMG. Por sete anos, foi repórter da Ponte Jornalismo.

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