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Ao menos 770 publicações acadêmicas usaram IA sem sinalizar

Conselho Nacional de Educação elabora diretrizes que serão submetidas a consulta pública em setembro. Enquanto isso, algumas universidades têm criado guias próprios para orientar professores e alunos

Ao menos 770 publicações acadêmicas usaram IA sem sinalizar
Arte: Rodolfo Almeida

Quando entrei na pós-graduação, na UFMG em 2023, o ChatGPT já tinha se popularizado no Brasil. Alguns professores o repreendiam e diziam ser capazes de detectar o uso de inteligência artificial em textos, apesar da confiabilidade desses programas ser baixa. Outros incentivavam o recurso com parcimônia, como assistente para resumos e anotações.

De acordo com pesquisa da Associação Brasileira de Mantenedoras de Ensino Superior (Abmes), que reúne empresas privadas do setor, 83% dos alunos de graduação disseram conhecer ferramentas de inteligência artificial, sendo ChatGPT, da OpenAI, Gemini, do Google, e Copy.ai as mais citadas. Metade relatou utilizar semanalmente esses recursos na rotina de estudos. Os dados são referentes ao ano de 2023.

Outra questão é como a inteligência artificial está impactando publicações acadêmicas. O pesquisador Alex Glynn, da Universidade de Lousville, mantém o Academ-AI, um acompanhamento independente de casos de uso não-sinalizado de IA em periódicos, conferências e capítulos de livros. Ele diagnosticou que cerca de um quinto das publicações da área de ciência da computação contêm algum uso não-sinalizado de IA.

🤔
Uso não-sinalizado?
As publicações são incuídas no levantamento por não conterem qualquer menção ou reconhecimento do uso de IA, mas conterem frases que sugerem o uso de Modelos de Linguagem Ampla (LLMs), como, por exemplo:

- "Claro, aqui estão os resultados"
- "Como um modelo de linguagem de IA, é importante afirmar..."
- "Até minha última atualização..."

Estes trechos sugerem que chatbots de IA foram usados na redação dos artigos sem revisão humana – inclusive pela instituição de publicação.

O levantamento indica um aumento gradual na quantidade de artigos com usos não-sinalizados de IA a partir de nov.2022, quando o ChatGPT foi aberto ao público geral.

A grande maioria dos artigos não chegou a sofrer retratações ou correções por parte de seus publicadores – e as correções chegaram a levar até 274 dias para acontecer nos poucos casos em que houve correção, segundo análise de Glynn.

O levantamento contém seis casos de publicações brasileiras com usos não-sinalizados de IA entre 2023 e 2025. Três deles são de publicações da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, na área de psiquiatria clínica (veja mais consultando os dados completos aqui).

Os esforços de regulamentação

No ano passado, o Conselho Nacional de Educação (CNE), que é vinculado ao Ministério da Educação (MEC), realizou o primeiro seminário sobre os impactos e desafios da inteligência artificial na educação. Neste mês, o órgão deve finalizar um relatório que servirá de base para a criação de diretrizes para regulamentar a IA na educação básica e na superior.

A previsão é de que o texto seja submetido a consulta pública em setembro, segundo o relator da parte de educação superior e vice-presidente da Abmes, Celso Niskier. "Uma das sugestões que deve constar no documento é que cada instituição elabore o seu plano de implantação da IA, considerando importantes questões como a privacidade dos dados, a proteção dos dados, a proteção do direito autoral", disse ao Núcleo.

A reportagem questionou o MEC e a Abmes sobre levantamentos de universidades que criaram normas ou guias para o uso de inteligência artificial, mas ambas responderam que não tinham.

Algumas instituições, como o Senai Cimatec, em Salvador (BA), e a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) já publicaram recomendações para os corpos docente e discente.

Em outros casos, há professores que se uniram de maneira independente para produzir materiais, como Marcelo Sabbatini, do Programa de Pós-Graduação em Educação Matemática e Tecnológica da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Ele e outros dois pesquisadores das universidades federais do Paraná e de Goiás lançaram, em dezembro de 2024, um e-book com diretrizes para o uso ético e responsável da IA generativa.

O guia propõe que a IA seja tratada como um assistente de pesquisa para auxiliar tarefas, trazendo reflexões, cuidados e práticas pautados em transparência, privacidade de dados, integridade da pesquisa, direitos autorais e reconhecimento de vieses (de raça, de gênero, de cultura etc.), por exemplo. É essencial que haja sempre supervisão humana.

Para Sabbatini, pensar a IA generativa como assistente "vai em direção contrária à expectativa das grandes empresas, porque elas somente vão rentabilizar e viabilizar economicamente a inteligência artificial na medida que substituem o trabalho humano".

Essas recomendações têm se baseado em publicações da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) que, desde 2021, tem produzido os primeiros instrumentos globais para normatização da IA. Já disponíveis em língua portuguesa, há e-books sobre ética de maneira geral, uso do ChatGPT na educação superior e guia sobre uso da IA generativa na educação e na pesquisa, entre outros.

Sabbatini aponta que na UFPE, onde leciona, ainda não foi criada uma norma e considera importante haver princípios norteadores, desde que não limite a autonomia e as particularidades das universidades e de centros de pesquisa. Ele ressalta a necessidade de um letramento da comunidade acadêmica em como a tecnologia em geral, não só a IA, impacta o processo pedagógico.

"A gente está falando agora da inteligência artificial. Em algum momento teve um debate sobre programação. Mas, por exemplo, quando chegou a internet, não teve essa mesma movimentação, embora o potencial que ela traz de transformar a forma de acessar o conhecimento é semelhante", afirma.

O debate sobre soberania digital

Um exemplo é a dependência de recursos oferecidos por Big Techs, como serviços de nuvem para armazenamento de dados, que não passam pelo mesmo debate.

"Existe uma questão de colonialismo de dados, da soberania tecnológica, que a gente já vê, por exemplo, com essas ferramentas que se consolidaram principalmente a partir da pandemia", explica Sabbatini.

Na universidade que ele atua, por exemplo, todo o pacote do Google é utilizado, tanto para e-mail como armazenamento de dados. "Mas agora vai vir essa discussão da plataformização de inteligência artificial. Existe hoje uma articulação, ainda que tímida, de reivindicar que passamos a ter nossas próprias tecnologias".

O Plano Brasileiro de Inteligência Artificial (PBIA), lançado ano passado, prevê investimento em soluções brasileiras no setor público. Ao Núcleo, o MEC ressaltou que as propostas no campo da educação superior são de abertura de "cursos e disciplinas na graduação, além de fomento à pesquisa, inclusão e acessibilidade na educação".

Leia a íntegra da nota do MEC

No Sistema Nacional de Informações da Educação Profissional e Tecnológica (Sistec) do Ministério da Educação – sistema de registro, divulgação de dados e de validação de diplomas de cursos de nível médio da educação profissional e tecnológica – há três instituições ofertando, em caráter experimental, o curso técnico em Inteligência Artificial. São elas: Senai (Salvador/BA), Escola Técnica Estadual Ministro Fernando Lyra (Caruaru/PE) e Senac (Goiânia/GO).A oferta se dá em caráter experimental uma vez que o curso ainda não consta no Catálogo Nacional de Cursos Técnicos.

O MEC faz parte do Plano Brasileiro de Inteligência Artificial (PBIA). Cursos e disciplinas na graduação, além de fomento à pesquisa, inclusão e acessibilidade na educação, são algumas das propostas do Ministério e que também abrangem a disponibilização automática de vagas em cursos de ciência de dados e IA no Fundo de Financiamento Estudantil (Fies); concessão de bolsas de doutorado-sanduíche no exterior da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) para doutorandos na área de IA; fomento ao Programa Nacional de Pós-Doutorado (PNPD) em inteligência artificial e a projetos de pesquisa educacional com foco no uso da IA na educação brasileira; e incentivo a projetos de mestrado e doutorado interinstitucional em IA.

Para Sabbatini, é necessário haver amplo debate, com participação de professores e alunos, especialmente das entidades públicas para que não haja desigualdade tanto no acesso quanto nas implicações do uso da IA:

"A IA é uma ferramenta interessante, mas não é disruptiva nem uma revolução que vai substituir o trabalho humano".

Como fizemos isso

Entramos em contato com o pesquisador Alex Glynn para requisitar a base completa de seu levantamento após encontrar o website do Academ-AI. O pesquisador forneceu este dump dos dados, que foram analisados por meio de Google Sheets e visualizados utilizando o software Flourish.

A reportagem também entrou em contato com o Ministério da Educação para questionar sobre as iniciativas de regulamentação do uso de IA no ensino superior.

Conheça quem liderou essa pauta

Jeniffer Mendonça

Jeniffer Mendonça

Jornalista especializada na cobertura de segurança pública e direitos humanos. Possui pós-graduação em Estudos de Criminalidade e Segurança Pública pela UFMG. Por sete anos, foi repórter da Ponte Jornalismo.

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