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No Roblox, crianças são incentivadas a comportamentos sexuais em troca de moedas virtuais

Em espaços não moderados do ambiente digital, crianças são induzidas a realizar ações com os avatares do jogo em troca de recompensas. Os personagens ganharam até apelido: "meninas do job" ou "primas do job”.

No Roblox, crianças são incentivadas a comportamentos sexuais em troca de moedas virtuais
Arte: Aleksandra Ramos

O Roblox, plataforma de games extremamente popular entre crianças e pré-adolescentes, tem sido usada por alguns jogadores para simular atos de conotação sexual em troca de moedas virtuais.

Em espaços não moderados do ambiente digital, crianças são induzidas a realizar ações com os avatares do jogo em troca de recompensas. Os personagens ganharam até apelido: "meninas do job" ou "primas do job”.

No TikTok é possível encontrar vários alertas de responsáveis e também vídeos dos próprios jogadores sobre o que acontece em alguns jogos dentro do Roblox.


É importante porque...

Mostra como um jogo usado por milhões de crianças virou espaço para simular exploração sexual, expondo falhas graves de segurança digital;

Revela os impactos dessa exposição precoce no desenvolvimento infantil e a urgência de medidas de proteção mais efetivas


A administradora Carolina Junqueira, 34, mãe do Rudá, de 7 anos, ficou preocupada diante dos vídeos que viu. “Encaminhei para o pai dele, que já sabia de algo assim. Mas quando o Rudá joga o Roblox, não é nesse modo online de conversa. Ele só cria ambientes ali", diz. 

Lançado em 2006, o Roblox permite que usuários criem e joguem games desenvolvidos pelos jogadores. Embora tenha uma proposta voltada à criatividade e interação social, o acesso livre a salas criadas por terceiros abre brechas para práticas inadequadas, incluindo a sexualização de menores. É nesse contexto que surgiram ambientes onde avatares infantis simulam relações em troca de benefícios no jogo.

Em alguns cenários, a proposta não é cumprir missões ou disputar pontos, mas sim interpretar personagens e construir narrativas coletivas.

Nesse formato, o jogador pode criar e personalizar seu avatar, definindo características físicas, vestimentas, profissão e comportamentos. Em jogos populares dentro do Roblox, como o Brookhaven, os personagens são incentivados a realizar “trabalhos” semelhantes aos de prostituição para ganhar moedas ou itens virtuais. A prática funciona como uma transa simulada.

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Especialistas apontam que esse tipo de interação contribui para a adultização de crianças e a naturalização de comportamentos que imitam práticas sexuais. Em vez de apenas jogar, os menores passam a participar de dinâmicas que envolvem troca de “favores” por status no ambiente virtual, o que pode interferir na percepção de limites e consentimento.

Exposição compromete percepção de si mesmo

A exposição de crianças a este tipo de conteúdo pode provocar distorções significativas no desenvolvimento emocional, cognitivo e social. Segundo Telma Vinha, professora da Faculdade de Educação da Unicamp e coordenadora adjunta do Instituto de Estudos Avançados (IdEA), crianças submetidas a essas vivências podem apresentar confusão sobre o sentido das relações, repetir falas erotizadas sem entender o que significam ou demonstrar comportamentos incompatíveis com a idade, como curiosidade excessiva sobre sexo e reprodução de gestos em brincadeiras ou com adultos.

Sem maturidade emocional e cognitiva para compreender o que vivenciam, esse público pode associar a sexualidade a sentimentos negativos, como medo, culpa ou vergonha. Vinha aponta ainda que isso compromete a construção futura de vínculos baseados em cuidado e confiança, além de dificultar a percepção de respeito, privacidade e limites. O impacto pode se refletir ainda na forma como a criança percebe o próprio corpo e se relaciona com os outros.

Rodrigo Nejm, doutor em Psicologia Social e especialista em educação digital do Instituto Alana, reforça que a presença de crianças em ambientes digitais, mesmo fora de conteúdos abertamente sexuais, já oferece riscos. Plataformas de vídeo, redes sociais e jogos expõem esse grupo a pequenas a imagens erotizadas ou a interações para as quais não estão preparadas. Para ele, há uma falsa ideia de que o domínio técnico sobre celulares e jogos representa maturidade, o que não corresponde à realidade.

O especialista alerta para práticas de manipulação emocional que ocorrem dentro de jogos e redes, incluindo aliciamento por adolescentes mais velhos ou adultos. Em alguns casos, há desafios organizados em plataformas como o Discord que incentivam a indução de crianças a comportamentos sexuais, trocas por recompensas digitais ou envio de imagens íntimas. Mesmo quando o conteúdo não é inicialmente explícito, pode haver uma progressão gradual, conduzindo a situações de abuso.

Esse tipo de vivência interfere não apenas na percepção que a criança desenvolve sobre si, mas também nas formas de interação social. De acordo com o especialista, o impacto vai além do momento da exposição, compromete a capacidade da criança de reconhecer limites, lidar com vínculos e se proteger de novas situações abusivas, ampliando os riscos de danos prolongados à saúde mental e emocional.

Jogos com lógica de rede social

Segundo a psicóloga Renata Yamasaki, pós-graduada em Neuropsicologia pela Unifesp, esse processo é incompatível com o estágio de desenvolvimento infantil e se manifesta, especialmente no meio digital, por meio de personagens com visual sexualizado, danças, falas com conotação erótica e interações com desconhecidos.

Do ponto de vista neuropsicológico, essas experiências impactam diretamente o desenvolvimento do cérebro infantil. Yamasaki explica que o contato repetido com esse tipo de estímulo molda conexões nas áreas ligadas ao prazer e à memória emocional, o que pode afetar a percepção corporal e contribuir, ao longo do tempo, para insegurança, erotização precoce e baixa autoestima.

Vinha reforça também que a hipersexualização funciona como uma extensão grave da adultização, sendo alimentada por redes sociais, publicidade e plataformas digitais. Para ela, jogos online como Roblox, Free Fire, Minecraft e Fortnite têm se tornado ambientes de vulnerabilidade, onde práticas com conotação sexual são tratadas como brincadeiras e conteúdos sensíveis circulam sem supervisão. Esses espaços também têm sido explorados por redes de aliciamento que utilizam desafios e linguagem específica para manipular e envolver crianças.

A professora destaca que o Roblox, embora tenha aparência infantil e proposta lúdica, já foi alvo de denúncias por abrigar conteúdos de natureza sexual e práticas de exploração “simbólica”. Em 2024, um relatório da Hindenburg Research alertou para falhas graves de segurança na plataforma, apontando desde perfis ofensivos até jogos com temáticas abusivas acessíveis a menores. A empresa foi acusada de priorizar interesses comerciais em detrimento da segurança das crianças.

A exposição excessiva de crianças nas redes sociais também amplia os riscos. Imagens e interações compartilhadas publicamente acabam se transformando em conteúdo voltado à performance e validação, favorecendo o aliciamento e a exploração, principalmente de meninas, que são o principal alvo, segundo os especialistas. Em muitos casos, a criação de vínculos afetivos artificiais com aliciadores é usada como ferramenta de manipulação e abuso. O cenário, segundo Vinha, exige medidas urgentes de regulação, proteção e acompanhamento.

Condutas podem configurar crime

A Constituição Federal e o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) estabelecem a obrigação da sociedade, da família e do Estado de proteger crianças e adolescentes contra qualquer forma de violência, exploração ou negligência. No ambiente digital, essas garantias se estendem a práticas que envolvam dados, interações e conteúdos com conotação sexual.

Segundo a criminalista Maria Araújo, especializada em temas digitais e sócia do Ráo & Lago Advogados, o Marco Civil da Internet reforça que o tratamento de dados de menores deve sempre considerar o seu melhor interesse, sendo autorizado apenas com o consentimento dos responsáveis legais.

A especialista explica que trocas de favores sexuais entre avatares de crianças e adolescentes, como os chamados “jobs” no Roblox, podem se enquadrar como crimes previstos no Código Penal e no ECA. Entre eles, o artigo 218 do Código Penal, que trata da corrupção de menores com o objetivo de satisfazer a intenção sexual de terceiro, e o artigo 241-C do ECA, que criminaliza a simulação da participação de menores em cenas de sexo explícito por meio de representações visuais, incluindo avatares. A configuração do crime depende da análise do caso concreto.

Araújo aponta que outras classificações podem ser aplicadas, como os artigos 241-A e 241-D do ECA, que tratam da divulgação de conteúdos sexuais envolvendo crianças e do aliciamento por meios de comunicação. Ela observa que, mesmo que as interações ocorram entre avatares, a natureza da troca e a intenção do agente podem ser suficientes para configurar o crime. A especialista destaca ainda que o meio digital não exclui a aplicação da lei, desde que os elementos estejam presentes.

Sobre os caminhos legais para a denúncia, a criminalista informa que o registro pode ser feito por boletim de ocorrência presencial ou eletrônico, inclusive sem a necessidade de provas no momento inicial. Também é possível acionar o Ministério Público ou utilizar canais como o Disque Denúncia (181) e o Web Denúncia, em São Paulo. Caso haja provas digitais, como prints, vídeos ou mensagens, recomenda-se preservar os dispositivos originais para manter o rastreamento da prova e viabilizar a investigação.

Araújo alerta, no entanto, que armazenar imagens ou vídeos com conteúdo sexual envolvendo menores é crime, ainda que com intenção de denunciar. A exceção é quando o material é mantido em sigilo, com finalidade de comunicação às autoridades e apagado após o recebimento. Ela reforça que a legislação brasileira já prevê penas de reclusão para diferentes formas de exploração virtual infantil, e que a responsabilização só ocorrerá com a formalização da denúncia e a apresentação de indícios à autoridade competente.

Como identificar sinais e proteger as crianças

A exposição precoce de crianças a ambientes digitais e jogos não apropriados para sua idade pode gerar impactos comportamentais e emocionais relevantes. Segundo Nejm, é fundamental que os pais compreendam que redes sociais como Instagram, TikTok, YouTube e WhatsApp têm idade mínima de 13 anos.

Ainda assim, muitas crianças abaixo dessa faixa etária acessam essas plataformas sem que estejam preparadas para lidar com os riscos envolvidos. O mesmo se aplica a jogos com múltiplos ambientes de interação, como Roblox, que exigem atenção aos mecanismos de controle e mediação parental.

Assim como Carolina faz com o filho, a orientação é que os pais acompanhem ativamente a experiência digital dos filhos, da mesma forma que fariam em atividades presenciais. Isso não significa vigilância constante, mas sim a mediação da entrada da criança no mundo digital.

O especialista do Instituto Alana destaca ainda que os jogos e dispositivos deveriam oferecer ferramentas de controle mais acessíveis, e critica o descompasso entre o investimento das empresas em estratégias de consumo e o investimento em segurança digital para o público infantil.

Sinais de alerta comportamentais podem indicar que a criança está passando por uma situação de risco. De acordo com Yamasaki, comportamentos como regressão (voltar a urinar na cama, chupar dedo), sexualização precoce fora de contexto, isolamento, medo excessivo, queda no desempenho escolar e mudanças bruscas no uso de aparelhos eletrônicos (como usar escondido ou se irritar com supervisão) devem ser observados com atenção. Ela explica que essas reações podem estar ligadas à ativação prolongada do sistema de estresse, afetando funções básicas como o sono, o humor e a cognição.

Nejm acrescenta outros sinais: crianças que passam a esconder o que fazem online, que antes jogavam de forma aberta e agora evitam a presença dos pais; mudanças de comportamento repentino, como uma criança antes introvertida que passa a demonstrar atitudes erotizadas em brincadeiras; ou ainda aquelas que recebem presentes, itens ou moedas virtuais dentro dos jogos, o que pode indicar aliciamento ou chantagem. Ele reforça que os pais devem monitorar o tipo de consumo virtual, inclusive com relação ao uso de cartão de crédito para compras nos jogos.

A mediação ativa, segundo os especialistas, é a principal forma de prevenção. Além do acompanhamento cotidiano, Nejm destaca a importância da educação sexual como parte do repertório de proteção infantil. A orientação, o conhecimento do próprio corpo e a regulação das interações com outras pessoas devem começar cedo, de forma adequada à idade, sem a necessidade de abordar conteúdos sexuais diretamente. Sinais persistentes ou abruptos podem justificar uma escuta especializada e, se necessário, encaminhamento às autoridades de proteção à infância.

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Recentemente o estado da Louisiana processou o Roblox, acusando a empresa de permitir um ambiente onde predadores sexuais atuam livremente. A ação afirma que a plataforma prioriza lucros e crescimento em vez da segurança infantil.

O que diz a plataforma

A reportagem procurou o Roblox para falar sobre o caso e a plataforma afirmou que o conteúdo viola as políticas da empresa e foi removido assim que identificado.

A companhia afirmou que “a Roblox tem um profundo compromisso com a segurança e o bem-estar da nossa comunidade, com dezenas de milhões de pessoas vivenciando experiências positivas todos os dias. Acreditamos na importância de criar uma experiência segura e adequada à faixa etária de todos os nossos usuários, e nossos Padrões da Comunidade proíbem explicitamente conteúdo romântico ou sexual na plataforma”.

Leia na íntegra a resposta do Roblox

Este conteúdo viola nossas políticas e é removido assim que identificado. A Roblox tem um profundo compromisso com a segurança e o bem-estar da nossa comunidade, com dezenas de milhões de pessoas vivenciando experiências positivas todos os dias.

Acreditamos na importância de criar uma experiência segura e adequada à faixa etária de todos os nossos usuários, e nossos Padrões da Comunidade proíbem explicitamente conteúdo romântico ou sexual na plataforma.

Por padrão, para usuários com menos de 13 anos, também restringimos o acesso a jogos e experiências projetados principalmente para socialização. Nossa equipe especializada, composta por milhares de moderadores e ferramentas automatizadas de detecção, monitora de perto nossa plataforma para fazer cumprir nossos padrões, tomando medidas rápidas contra qualquer conteúdo ou usuário que viole nossas políticas.

Nossos filtros de bate-papo por texto são projetados para bloquear o compartilhamento de palavras ou frases inadequadas, e buscamos de forma proativa sinais de abuso na comunicação por bate-papo de voz em tempo real.

Também utilizamos uma combinação de detecção humana e automatizada para, de forma preventiva, revisar a segurança de arquivos de imagem, vídeo e áudio antes que sejam enviados e publicados na Roblox.

Trabalhamos incansavelmente para aprimorar nossos sistemas, processos e políticas de segurança que apoiam nossa missão de construir a plataforma mais segura e civilizada para todos.”

Reportagem Priscila Carvalho
Arte Aleksandra Ramos
Edição Alexandre Orrico
Alexandre Orrico

Alexandre Orrico

Editor-fundador do Núcleo Jornalismo. Foi também gerente de comunidades no Brasil do ICFJ de 2021 a 2023. Já passou pela editoria de tecnologia da Folha de S.Paulo e foi editor do BuzzFeed Brasil.

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