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O Ministério das Relações Exteriores tem um "tech diplomat" focado especialmente no Vale do Silício, o diplomata Eugênio Garcia, primeiro brasileiro na função. Em entrevista ao Núcleo, ele falou sobre os desafios globais em torno da regulação de plataformas e inteligência artificial para 2024.
Baseado no Consulado-Geral brasileiro de São Francisco, nos EUA, ele chegou ao cargo em 2021, quando as atividades consulares ainda estavam limitadas pela pandemia. Parte do trabalho dele é se reunir com aceleradoras, incubadoras, empresas e pesquisadores para promover a presença brasileira na região.
A outra é manter um canal de interlocução sobre regulação e política digital entre o Itamaraty e as Big Techs, que inicialmente resistiram à presença de diplomatas no Vale do Silício, segundo Garcia. O diplomata explica que o assunto é "desconfortável" para as empresas.
Ao Núcleo, Garcia também ressaltou que o Brasil será ativo nos debates sobre regulação de plataformas e inteligência artificial previstos para a Cúpula do Futuro e no G-20. A meta é promover mais participação entre os países em desenvolvimento para que europeus e norte-americanos não monopolizem os temas.
Eugênio Vargas Garcia formou-se diplomata pelo Instituto Rio Branco em 1994. Desde 2021, é cônsul-geral adjunto e chefe de Ciência, Tecnologia e Inovação do Consulado-Geral do Brasil em São Francisco. Antes, foi assessor-sênior do Presidente da Assembleia Geral das Nações Unidas (2018-2020), chefe da Divisão das Nações Unidas do Itamaraty (2015-2018), e serviu em diversos países. É doutor pela Universidade de Brasília (UnB) e pesquisador em inteligência artificial e governança global. Membro da Aliança pela Governança da IA do Fórum Econômico Mundial, perito latino-americano da Tech Diplomacy Network e Notável da i2AI (International Association of Artificial Intelligence).
Esta entrevista foi editada pelo Núcleo para fins de brevidade e concisão, sem quaisquer intervenções no sentido das falas.
NÚCLEO — Por que iniciativas de diplomacia da tecnologia estão se concentrando mais no Vale do Silício? Tem convite das Big Techs norte-americanas? Como funciona essa influência?
EUGÊNIO GARCIA — Não tem convite. No início, houve resistência dessas grandes empresas porque elas não estavam acostumadas. Elas geralmente estão presentes em vários países, como o Brasil, com filiais, ou em Bruxelas, na União Europeia, onde inclusive desenvolvem campanhas de lobby. Essa área de política digital era vista por elas como um trabalho a ser feito junto às capitais dos países envolvidos.
No início, eu perguntava algo e falavam: a pessoa que cuida disso está em Washington. Agora as big techs já sentiram que o mundo mudou. Se antes eles tinham certa autossuficiência, hoje existe uma demanda mundial. Vemos ameaças à democracia, desinformação, discriminação algorítmica e uma série de coisas que estão na agenda. As plataformas também não podem deixar de se envolver porque sabem que os governos estão se mexendo. Há o caso da União Europeia, onde já há uma regulação avançada.
É uma via de mão dupla: procuramos o diálogo, se possível respeitoso, e ouvindo a opinião do outro lado, mas deve haver disposição de ambos. Esse ponto ainda evolui e depende muito da capacidade de cada país em fazer chegar a sua visão. Alguns tem uma perspectiva de regulação mais rígida, outros menos. O próprio EUA é um exemplo de quem não quer uma regulação forte como a da União Europeia. Dizem que isso vai atrapalhar a inovação, um argumento que é falacioso, mas que existe.
Há plataformas que não estão abertas ao diálogo sobre política digital?
Tenho sido muito bem recebido por elas, mas às vezes o resultado não é exatamente o esperado. Muitas vezes são encontros onde eles apenas mostram o que têm feito. Tentam vender o próprio peixe e articular uma agenda que seja do interesse deles para mostrar uma parte positiva, quando o que se discute é muito mais abrangente. Envolve medidas que são demandas da sociedade e que, ao se tornarem lei ou regulação, criam obrigações, possivelmente custos adicionais e até multas. Aí já surge certo desconforto, mas dialogar e colocar as questões sobre a mesa é parte da diplomacia e da política.
Como cobranças por regulação são recebidas por empresas do Vale do Silício, a exemplo das demandas por responsabilização que se seguiram após o 8 de janeiro aqui ou o caso do Capitólio nos EUA?
Em geral, as Big Techs tentam mostrar aquilo que elas fizeram ou tem feito no sentido de moderação de conteúdo, de controle do que é postado para evitar inclusive violações às suas próprias políticas.
Cada uma delas tem as suas regras e seus mecanismos de controle, inclusive utilizando inteligência artificial porque a quantidade de postagens é tanta que é impossível apenas humanos monitorarem 24 horas por dia. Boa parte disso é automático e casos mais específicos são analisados pelas equipes.
Só que não é suficiente. Houve no ano passado e em 2022 momentos de crise no setor com demissões em massa e muitos eram funcionários de setores que cuidam de ética. O caso mais típico é o do Twitter, agora X, que mudou de nome, dono e política. A polarização e a violência extrema nascem de certas campanhas, com notícias falsas e desinformação, e têm reflexos na vida real. Isso é muito grave. Por isso a discussão está na ordem do dia.
Há um movimento brasileiro de levar debates que se concentram no Vale do Silício para a ONU. Por quê? O Brasil quer liderar negociações globais em torno de IA e plataformas?
Existem vários caminhos para tratar isso. Há a parte interna da política doméstica, daquilo que se discute no Brasil, feito em iniciativa própria e em função da nossa realidade, por exemplo, no Congresso, mas também é um tema global, em que você tem outros fóruns apropriados.
Um deles é a Unesco, que trabalha com cultura, educação e informação. Há dois ou três meses, eles lançaram um documento com diretrizes, orientações e sugestões para a regulação de plataformas digitais. A própria Unesco também tem um documento de recomendações sobre ética da IA. Mas, quando se fala de negociação, há um processo em andamento, que é o pacto global digital, uma iniciativa da ONU.
Devemos ter até meados deste ano um relatório que vai indicar as prioridades dos estados-membros para conduzir isso na Cúpula do Futuro. Inteligência artificial e governança da internet estarão lá. O governo brasileiro considera a ONU o foro adequado porque isso não pode ser analisado por um grupo pequeno de países e de forma restrita. É preciso algo global, que inclua os países em desenvolvimento. Não impede também que seja um assunto debatido em outras instâncias.
O Brasil agora tem a presidência do G-20 e lá há um grupo de trabalho de economia digital que vai discutir integridade da informação nas plataformas e inteligência artificial. Vamos promover uma discussão, como presidentes do G-20, para sentir qual a margem de consenso entre os países-membros e avançar no tema.
O que é o G-20 e por que o Brasil está na presidência
É o grupo que reúne representantes das maiores economias do mundo – brasileiros estão em nono. Seus membros incluem 19 países, a União Europeia e a União Africana. Em dezembro, o Brasil assumiu pela primeira vez a presidência temporária do G-20, com mandato até o fim de novembro deste ano. A cúpula global do G-20 será realizada no Rio de Janeiro, nos dias 18 e 19 de novembro.
Você também falou de trazer os países em desenvolvimento ao debate. Hoje ele ocorre sem eles?
Nos fóruns sobre inteligência artificial que eu participo, como reuniões e seminários, mesmo os mais acadêmicos, a presença majoritária é de países da América do Norte e europeus. Às vezes, há Japão e Coreia do Sul, mas são aqueles que estão na liderança tecnológica.
O que você vê é uma grande ausência de certas regiões, como África, América Latina e Caribe, Ásia Central e Oriente Médio, então sempre que possível vamos buscar os fóruns que permitam uma representação mais abrangente da maioria. Se temos instituições multilaterais onde esses países estão, como a própria ONU, isso dá acesso e traz representação.
Em toda a discussão de tecnologia, inclusive IA, há um reconhecimento não só do Sul Global, mas também das organizações e atores do chamado Norte Global, de que falta representatividade. A inclusão vai ser um dos grandes temas de 2024. Isso é uma distorção a ser corrigida.
Qual o posicionamento a nível de política digital que o Brasil pretende levar às discussões? Há políticas que são prioritárias?
Isso já está sendo bastante falado, inclusive por autoridades do governo brasileiro envolvidas diretamente com esses temas, que são transversais e exigem um enfoque multidisciplinar. Essas autoridades já se pronunciaram várias vezes sobre os efeitos da inteligência artificial sobre a sociedade. Não quero enfatizar o lado perigoso, mas há implicações que mexem com a ética e a forma de se relacionar em sociedade.
A posição do Brasil, inclusive nos fóruns internacionais, é de que não dá para deixar como está. Quando falamos em regulações, mesmo em normas internacionais futuras sobre esses assuntos, é para zelar pelo interesse público. Você pode delegá-lo ao setor privado? Isso é de responsabilidade do Estado. Não se deveria delegar a proteção e promoção dos direitos humanos a empresas, e não julgo se são brasileiras, estrangeiras, grandes ou pequenas.
Quando você tem a sociedade sob risco, no caso a própria democracia, é momento de intervir e ter algum tipo de ação que possa evitar esse lado perigoso, mas não podemos ver só o lado negativo.
Inteligência artificial e outras tecnologias emergentes podem trazer muitas coisas boas, mas é preciso encontrar um ponto de equilíbrio para maximizar benefícios e mitigar os riscos. Em países em desenvolvimento, temos prioridades de saúde, educação e infraestrutura. Há carências estruturais na América Latina e na África que a tecnologia poderia ajudar. Essa é a prioridade do Sul Global e pode não ser a mesma de outros países [do Norte], que talvez estejam atentos a outras questões.
Em dezembro, em seu discurso à cúpula do G-77, o presidente Lula alertou que, se não houver diretrizes globais para a inteligência artificial, os modelos gerados por “países do Norte” vão se impor. Quais os riscos disso?
O que é o G-77 e o que disse Lula no discurso
É uma coalizão de países em desenvolvimento formada dentro das Nações Unidas (ONU). Inicialmente, foram 77 países fundadores – hoje, 134 integram o grupo. Na COP-28, que discutiu o clima global em Dubai, nos Emirados Árabes, Lula discursou na cúpula do G-77 e falou sobre transição ecológica, justiça climática e inteligência artificial. Leia a íntegra do discurso aqui.
Como o próprio presidente Lula também disse nesse mesmo discurso, vou usar o exemplo de usos militares da inteligência artificial. Há uma corrida tecnológica para isso. Existe o risco de que, em algum momento, alguns países na liderança desse processo consigam o controle ou desenvolvimento de uma tecnologia mais avançada e depois cheguem à conclusão de que ela é tão potente e poderosa que seria melhor restringi-la e evitar sua proliferação.
Isso vimos acontecer com a energia nuclear. Depois da primeira bomba atômica, vários países passaram a investir nela para fins militares. E aí chegamos em um momento em que se assinou um tratado de não proliferação de armas nucleares no qual quem tem a bomba, tem, e quem não tem, não terá, criando uma dicotomia.
IA e energia nuclear são diferentes, mas há essa ideia de que, se a tecnologia é poderosa demais, alguns países podem achar que seria o caso de controlá-la para evitar que outros a acessem. Por isso, antes que isso aconteça, países em desenvolvimento precisam estar ativos para conversar desde o início. Se não, podemos ter normas internacionais que não nos interessam. Se for cristalizada uma situação de exclusão ou assimetria, isso seria bastante negativo.
O Brasil aposta no papel da ONU em um momento de fragilidade do multilateralismo. Esses debates têm mesmo o potencial de gerar obrigações concretas ou podem virar só um tratado bonito que vai ser ignorado depois?
O multilateralismo está de fato em um momento difícil, sobretudo em função dessas realidades geopolíticas e discordâncias entre potências, mas à medida que esses temas continuam na agenda, precisamos desde já ver quais são as soluções viáveis, factíveis e eficazes. Já se fala hoje, pelo menos em termos acadêmicos, de se criar uma agência internacional para IA.
Um painel intergovernamental à semelhança do painel sobre clima, o IPCC, que auxilia os formadores de políticas a tomarem decisões com base na ciência. Há a proposta de um para a inteligência artificial. Sendo realista, algumas decisões vão exigir um acordo que, no curto prazo, é muito difícil, mas este é o momento em que vamos moldar o futuro. Não adianta esperar dois ou três anos porque ele vai chegar e de repente não participamos dessa modelagem.
Esse é o desafio para o Brasil.