Além do prestigioso cargo de palpiteiro freelancer aqui no Núcleo, desenvolvi por conta própria uma ferramenta chamada @projeto7c0, cujo objetivo era fiscalizar a integridade da linha do tempo de políticos no Twitter, a fim de monitorar e deixar um registro dos posts deletados por autoridades.
Políticos de todos os espectros políticos apagavam tweets o tempo todo, por vários motivos – muitas vezes para tentar escapar da responsabilização por posts infelizes. Checadores de fatos usavam a base do meu projeto para tentar verificar se existia alguma credibilidade em prints, já que o argumento de "fulano postou e apagou" era muito recorrente.
À medida que muitos brasileiros – incluindo políticos e influenciadores (principalmente orientados à esquerda) – passaram a ocupar novos espaços no Bluesky, em um movimento ainda gradual, mas aparentemente estável, de migração (principalmente após o bloqueio do X no Brasil), começaram também a pipocar novos desafios inerentes a todas as redes sociais que ganham escala.
Muitos foram abordados, como problemas com conteúdo de exploração sexual e desinformação, e outros não. Um deles, que vou abordar, trata sobre integridade temporal de linhas do tempo.
EXPLICAÇÃO PROTOCOLAR. Antes de explicar o potencial impacto no cenário da desinformação, preciso antes fazer uma breve introdução comentando uma particularidade do protocolo usado no Bluesky.
O AT Protocol trata cada usuário como uma fonte independente de informação, ao passo que a timeline é apenas o agregado dessas fontes. Pra deixar ainda mais claro: cada usuário é dono de seus próprios dados, e eles são apenas compilados e mostrados pelos apps compatíveis com o protocolo (como o Bluesky).
Isso permite que o usuário tenha maior controle sobre seus próprios dados, mas também que ele pode exercer grande poder de manipulação, caso ele queira ou saiba como fazer.
Esse controle expandido sobre os dados permite até mesmo o desenvolvimento de soluções de conversão de tweets para o Bluesky preservando a data da postagem original.
Foi analisando o funcionamento desse recurso que ficou clara a possibilidade de realizar postagens retroativas no Bluesky – ou seja, publicar hoje um post com uma data do passado.
Onde mora o perigo
Agora explico porque considero isso perigoso.
Nada impede que eu crie, com uma data retroativa, um comentário sobre fraude no futebol, por exemplo. Essa postagem apareceria na timeline como se tivesse sido realizada no intervalo de um jogo e seria indistinguível de uma postagem feita com conhecimento privilegiado.
Como nada me impediu de fazer isso, foi exatamente o que eu fiz no post abaixo:
Vocês podem achar que esse jogo do Botafogo já deu, mas quem está por dentro dos esquemas das apostas sabe que o resultado vai ser 4 a 3 pro Palmeiras com Tiquinho errando um penal
— @projeto7c0.com.br 2023-11-02T01:48:58.125Z
No meu teste, usei um exemplo de apostas no futebol, mas há implicações para eleições, mercado de ações e qualquer outra atividade na qual fingir conhecimento prévio (ou até ser capaz de usar informações privilegiadas) seja relevante tanto para causar desconfiança quanto para fingir mais conhecimento que realmente se tem.
Pense em um coach que tenta demonstrar conhecimento com um post sobre recomendações de compra de ações, ou em um político que denúncia esquema de fraude de votos postando o resultado de uma eleição "antes" dela ocorrer. O potencial de dano aqui é significativo, com repercussões ainda não consideradas.
O que dá pra fazer
Felizmente esse problema tem uma solução – pelo menos é o que sugere a documentação do Bluesky.
Todas as informações postadas são gravadas usando uma estrutura de dados que se chama Merkle Tree, que usa hashes criptográficos para garantir a integridade dos dados – e essa estrutura grava a ordem que os dados são submetidos.
Acredito que sejam necessárias duas alterações:
- a primeira é simplesmente uma forma de etiquetar as ações que são realizadas fora da ordem cronológica, garantindo assim que os usuários saibam quais posts foram colocados de forma retroativa no Bluesky;
- a segunda é que toda conta ao ser criada no protocolo AT tenha que fazer alguma atividade de sincronização com outros nós da rede, garantindo que a primeira ação válida tenha uma data verificada por terceiros.
Com essas duas alterações, acredito que a rede impediria que o uso dessa liberdade de controle das postagens alimente máquinas de fake news, e é bom que isso seja feito antes que outros percebam o potencial destrutivo de posts retroativos.
Um desenvolvedor do BlueSky, desenvolveu um labeler que indica posts realizados com data incorreta (você assina ele aqui: @backdate.mozzius.dev), uma ótima solução paliativa para quem trabalha com checagem na rede.