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Uma empresa terceirizada pelo Ministério da Defesa fez uma lista, a pedido da pasta, dos perfis "mais influentes" no X (antigo Twitter) que clamavam pela demissão do ministro José Múcio nas semanas seguintes à invasão golpista à Praça dos Três Poderes em 8.jan.2023.
No total, 15 perfis foram destacados por posts classificados como "negativos" ou "positivos", conforme "relatórios especiais" feitos entre 21.jan e 23.jan.2023, mostram documentos obtidos via Lei de Acesso à Informação (LAI) pelo Núcleo.
Na época, o ministro sofria críticas por ter sido condescendente com acampamentos de bolsonaristas que pediam golpe na frente de quartéis. As manifestações resultaram em atos antidemocráticos pró-Bolsonaro em Brasília, com a depredação de diversos edifícios públicos, incluindo do Congresso Nacional, do Supremo Tribunal Federal e do Palácio do Alvorada.
A lista de perfis mapeados incluiu:
- um deputado federal;
- páginas de sátira;
- influenciadores;
- e também um pesquisador com poucos seguidores.
Na prática, o monitoramento da pasta fazia uma "clipagem de redes" que, no lugar de avaliar publicações na imprensa, como é normalmente feito, vasculhava publicações pessoais de usuários no X.
É ✷ importante ✷ porque...
Terceirizada do Ministério da Defesa listou críticos de Múcio nas redes
Relatórios fornecem dados solicitados em licitação, mas pasta diz que o monitoramento de redes que contratou não a representa
Baixa qualidade dos relatórios sobrevalorizou "quem" falava mal do ministro, no lugar de "o que" se falava dele, avaliam especialistas
Perfis pessoais
Especialistas consultados pelo Núcleo criticaram o formato dos relatórios, que listaram perfis sem critérios claros e focavam em "quem" tuitava, e não no que era dito ou compartilhado.
"Parecem estar qualificando pessoas, e não conteúdo", avalia a pesquisadora Rose Marie Santini, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e diretora do Netlab.
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Quem produziu os documentos foi a empresa a Supernova Serviços de Informação, ex-terceirizada de monitoramento de redes da pasta. A empresa foi contratada pelo governo Bolsonaro em fev.2021, trabalhou por um mês para a gestão Múcio em jan.2023 – momento em que fez os relatórios – e depois não teve seu contrato renovado pelo governo federal.
Ao Núcleo, o Ministério da Defesa disse que o conteúdo dos arquivos é de "inteira responsabilidade" da terceirizada e "não representa o monitoramento realizado pela Defesa", ainda que os relatórios sobre Múcio tenham sido feitos a seu pedido e seguindo o padrão requerido pela pasta na licitação que fez em 2021.
A LISTA
Dos 15 perfis catalogados nos dois relatórios especiais produzidos pela pasta, somente o jornalista Luís Nassif foi categorizado como um influenciador com posts "positivos" ao Ministério da Defesa.
Além dele, a lista inclui como influenciadores com publicações "negativas" à pasta o deputado federal Glauber Braga (PSOL-RJ), a professora Lola Aronovich e o jornalista Cleber Lourenço. O monitoramento também mapeou perfis de sátira, como "Distopia Brazil" e "Janoninho".
Por serem pessoas com muitos seguidores e mais exposição nas redes sociais, o Núcleo decidiu mostrar os perfis incluídos no monitoramento fornecido ao Ministério da Defesa.
Veja a lista extraída pelo Núcleo dos documentos:
O que são "clipagem" e a métrica de "sentimento" usada em monitoramento de redes
Clipagem é um processo de monitoramento, análise e arquivamento de menções feitas na mídia a uma determinada marca ou instituição. Ou seja, é quando uma assessoria de comunicação cataloga e organiza o que sai na mídia sobre seu cliente.
Já a "análise de sentimento" é uma métrica qualitativa usada para mensurar qual o impacto do que está sendo dito na imprensa. Esse tipo de análise pode ser empregada com o auxílio de inteligência artificial ou por meio da classificação humana. Mais recentemente, passou a ser empregado também para analisar posts nas redes sociais.
"ESCUTA SOCIAL"
Na avaliação do advogado André Boselli, coordenador do programa de Ecossistemas de Tecnologias de Informação e Comunicação da ONG Artigo 19, é "delicado" que governos vejam redes sociais como arenas públicas que podem ser monitoradas à vontade, já que nem todos os usuários imaginam que seus posts serão coletados por autoridades e analisados.
Neste caso, a Defesa monitorava as redes "para a eficiente tomada de decisão nos âmbitos políticos e estratégicos, bem como representação Institucional nas redes sociais e em outros canais de comunicação", segundo o edital que licitou a Supernova. Isto é, o material poderia ser usado para subsidiar decisões do ministro, e não só avaliar sua reputação.
"É um empobrecimento da democracia e da comunicação com o eleitorado porque se torna uma 'escuta' unilateral em que a cidadania não sabe que está sendo 'ouvida'", diz Boselli.
"Quando um monitoramento está ligado a um marcador individual, como os líderes de algo, um dos efeitos colaterais é gerar um alvo em quem emite opinião", diz o pesquisador Fabio Malini, professor da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) e coordenador do Labic, que vê esse tipo de análise individualizada permeada por um "dilema ético". "Ainda que seja importante entender os temas das conversas nas redes, elas são mais coletivas do que individuais", diz.
O que o contrato com a Supernova previa
A descrição do contrato de monitoramento de redes do Ministério da Defesa previa o seguinte:
"Monitorar de forma permanente (24x7), no período de 12 (doze) meses, a imagem do órgão nas redes sociais, incluindo blogs. O resultado da ação deve indicar repercussão (o quê), perfis influenciadores (quem), mídia (onde, quando), reputação e polarização (como), tendência, cenário brasileiro e demais informações estratégicas oportunas à tomada de decisão, tal como engajamento negativo. Fatos intempestivos que tenham obtido destaque no ciberespaço, e que de alguma forma estejam relacionados ao objeto monitorado, serão objeto de alerta à contratante. O resultado deve ser apresentado de forma clara e por intermédio de gráficos informativos e textos explicativos".
O edital de contratação também previa o "acompanhamento de crise, por acionamento da contratante".
O valor total da contratação foi de R$ 47 mil anuais, quantia considerada baixa pelos especialistas considerados pela reportagem.
Foco no influencer
Ao Núcleo, a sócia da terceirizada responsável pelo monitoramento da pasta, Leila Alcaires, disse que relatórios especiais eram feitos a pedido do ministério durante crises de imagem, o que incluía ressaltar quem eram os influenciadores-destaque nas redes.
"Esse momento [#ForaMúcio] foi um deles, assim como os do viagra e leite condensado", explica a sócia da Supernova, em referência a repercussões negativas na opinião pública sobre compras do doce e do remédio pelas Forças Armadas, entre 2021 e 2022.
"É preciso ter uma métrica de quem são os influenciadores que aparecem em uma posição privilegiada nas redes, mas aqui não tem critério nenhum", critica Santini. "Eles selecionam alguns posts e colocam um gráfico ao lado apenas para parecer que aquilo está baseado em dados", afirma a professora da UFRJ.
Já Malini diz que os relatórios do Ministério da Defesa mostram como o mercado de monitoramento de redes também sofre da precarização. "Pouco recurso para uma peça que se apresenta como científica, isto é, feita com método, rigor e tecnologia, mas na verdade foi um copia-e-cola daquilo que pode se apresentar como ameaça e tá sendo dito na rede social", avalia o professor da UFES.
Tenho nada com isso
O Ministério da Defesa diz não ser responsável pelo monitoramento que contratou. "A Ascom não listou em nenhum momento perfis críticos ao Ministro da Defesa", disse a assessoria de comunicação (Ascom) da pasta, que recebia os relatórios que ela requereu e no formato que ela definiu, o que incluía destacar "perfis influenciadores".
"O conteúdo dos relatórios era produzido exclusivamente pela empresa com base em palavras-chaves previamente fornecidas pela Ascom", afirmou a pasta.
Leia a íntegra das respostas do Ministério da Defesa
1. Finalidade dos relatórios: qual foi o uso dado pelo Ministério da Defesa aos relatórios de monitoramento de redes produzidos pela Supernova entre out/22 e jan/23? Os arquivos tiveram alguma serventia à inteligência ou à tomada de decisão da pasta no período após as eleições, particularmente em relação aos bolsonaristas que ocuparam as áreas de quartéis pelo país inteiro?
Resposta: O produto (relatório de monitoramento de redes sociais) era contratado e fornecido à ASCOM do Ministério da Defesa (ASCOM MD) com a finalidade de execução do trabalho do setor, que, entre outras funções, presta assessoramento de comunicação às diferentes áreas do Ministério. Tal material não gerou ato ou mudança de direção nos processos existentes na instituição, bem como nas ações no âmbito da política de assessoramento de comunicação social.
2. Impacto na imagem do órgão: por que os relatórios consideravam pedidos de intervenção militar, notícias falsas ou até mesmo chamados para a invasão da praça dos três poderes "positivos" à imagem do órgão? E por que críticas que não falavam mal do Exército, mas eram postadas por gente "à esquerda", eram "negativas"?
Resposta: Para a confecção dos arquivos, a ASCOM fornecia apenas as palavras-chaves, sendo que o conteúdo era produzido pela empresa e de sua inteira responsabilidade. Da mesma forma, os critérios de análise de sentimento e polarização eram feitos por definição exclusiva da empresa. Sendo assim, o conteúdo dos arquivos gerados pela empresa contratada não representa o monitoramento realizado pela Defesa, tampouco o posicionamento oficial da pasta em relação a qualquer assunto.
3. Orientação à terceirizada. Quais foram as orientações dadas pela pasta à terceirizada para guiar o monitoramento de redes no período relatado, inclusive no que se refere a termos-chave de interesse e premissas para esse tipo de classificação de sentimentos (positivo/negativo)?
Resposta: No período mencionado não houve por parte da ASCOM orientações adicionais para a empresa, mantendo-se as palavras-chaves definidas anteriormente para a execução do trabalho de monitoramento de redes sociais. Conforme explicado, os critérios de análise de sentimento, polarização eram feitos por definição exclusiva da empresa.
4. Posicionamento da pasta. Os relatórios também mostram que a pasta listou influenciadores que estavam pedindo "Fora Múcio" nas redes sociais, em jan/23, já no governo Lula. Por que o órgão decidiu listar perfis críticos ao ministro? Qual foi o uso destinado a esses informes?
Resposta: A ASCOM não listou em nenhum momento perfis críticos ao Ministro da Defesa. Conforme já explicado, o conteúdo dos relatórios era produzido exclusivamente pela empresa com base em palavras-chaves previamente fornecidas pela ASCOM.
5. Monitoramento de redes pela pasta. Após o fim da prestação do serviço por parte da Supernova no início de fevereiro de 2023, o Ministério da Defesa não renovou o contrato e alterou os termos da prestação do serviço de monitoramento, excluindo as redes sociais. Por qual motivo? Hoje, a iClipping, contratada deste ministério, não faz esse serviço, segundo o contrato que vi.
Resposta: Por decisão da administração o contrato não foi renovado. O trabalho de monitoramento de redes sociais atualmente é desenvolvido pela equipe da própria ASCOM.
Reparei que o edital de referência da licitação que contratou a Supernova menciona que os materiais deveriam ser distribuídos via mobile e e-mail. É possível confirmar quem mais recebia esses relatórios e se essa lista incluía mais servidores da pasta, além da equipe de ASCOM?
Resposta: O produto (relatório de monitoramento de redes sociais) era fornecido pela empresa somente à ASCOM.
Como fizemos isso
O levantamento do Núcleo analisou a íntegra dos mais de 250 relatórios obtidos via LAI. Eles eram divididos entre relatórios diários (manhã/tarde), semanais e especiais, esse último tipo feito somente a pedido da pasta em momentos de crise.
Para esta reportagem, selecionamos os dois únicos "relatórios especiais" no pacote, que se referiam à crise de imagem do #ForaMúcio, que ocorreu nas semanas seguintes ao 8 de janeiro.
Após analisarmos os dois arquivos, planilhamos os perfis influentes selecionados e cruzamos nossos dados com a avaliação de pesquisadores.