O que dizem os relatórios de redes sociais que o Ministério da Defesa quis manter em sigilo

Ministério de Bolsonaro coletou críticas a militares e catalogou tuítes golpistas como favoráveis. Núcleo conseguiu os documentos após seis meses de batalha judicial; governo Lula segue com agenda própria de redes mas ainda com transparência reduzida.
O que dizem os relatórios de redes sociais que o Ministério da Defesa quis manter em sigilo
Arte: Rodolfo Almeida
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Durante a presidência de Jair Bolsonaro (PL), o Ministério da Defesa monitorou pedidos por "intervenção militar" nas redes, catalogou posts golpistas como sendo positivos ao governo e fez listas de "perfis influentes" que faziam críticas à pasta, mostram relatórios obtidos via Lei de Acesso à Informação (LAI) pelo Núcleo.

O arquivo revisado pela reportagem contém mais de 200 informes diários produzidos entre out.2022 e jan.2023 por uma ex-terceirizada do ministério, a Supernova Serviços de Informação.

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Entre nov.2023 e mai.2024, o Núcleo enfrentou uma "batalha administrativa" de quase seis meses via LAI para obter acesso aos relatórios. Na ocasião, o atual Ministério da Defesa empilhou desculpas furadas para não nos liberar os materiais. Rebatemos os argumentos dos militares até o caso chegar à Controladoria-Geral da União (CGU).

No fim, o órgão decidiu em nosso favor e determinou que a Defesa deveria nos fornecer os dados que pedimos na íntegra. Você pode acessar o arquivo completo obtido via LAI.

No período, a coleta de milhares de menções às Forças Armadas no Facebook e no Twitter/X "destacou" cerca de 800 publicações de mais de 439 "influenciadores" e os dividiu entre favoráveis ou críticos ao governo.

Os perfis "influentes" mapeados com mais posts "negativos" ao ministério foram os do senador Humberto Costa (PT-PE) e do influenciador petista Thiago dos Reis, segundo levantamento da reportagem a partir dos relatórios.

Já os perfis com mais posts "positivos" foram um homem que fez 65 dias de lives pedindo golpe acampado no Comando Militar do Sudeste e o empresário bolsonarista Paulo Generoso, sócio do deputado federal Eduardo Bolsonaro e apoiador dos atos golpistas.


É importante porque...

Relatórios de redes do Ministério da Defesa viam posts golpistas e ameaças a autoridades como "positivos" à pasta

Ex-terceirizada listou 178 "perfis influentes" que criticaram a pasta nas redes, como políticos, jornalistas e influenciadores

Governo monitora redes sem regras claras de transparência


Na época, a assessoria de comunicação da Defesa era chefiada pelo general Rodrigo Vergara, que apoiou a empreitada bolsonarista contra as urnas eletrônicas. Os informes da Supernova eram disparados à equipe do general duas vezes ao dia, pela manhã e à tarde.

Esses relatórios – inéditos até então – revelam como a falta de transparência e de critérios claros sobre como governos podem ou não monitorar o debate público na internet abre brecha para a vigilância de críticos nas redes e a contratação de serviços de comunicação que, na prática, atendem a vieses ideológicos.

Hoje, o governo Lula também avança sua própria agenda de redes, sem metodologias claras e com transparência reduzida.

Em abr.2024, o Núcleo revelou que um fundo ligado ao Ministério da Justiça injetou R$ 42 milhões para mapear a "manipulação do debate público" e a "disputa digital" na internet sem ter um método definido de como fazer isso.

Meses antes, em nov.2023, a Secom de Lula criou uma norma que exclui relatórios de redes da presidência, como os que obtivemos da Defesa, de regras de acesso à informação ao desobrigar a pasta de armazenar ou disponibilizar esse tipo de documento.

Na avaliação do advogado André Boselli, coordenador do programa de Ecossistemas de Tecnologia de Informação e Comunicação da ONG Artigo 19, falta transparência em várias dessas iniciativas de "monitoramentos de redes" ou "escuta social".

No caso da Defesa, não fica claro qual tipo de política de comunicação se pretendia por meio dos relatórios fornecidos pela Supernova, diz Boselli.

"Um ponto que poderíamos aprimorar é criar a exigência de que essas metodologias sejam públicas e submetidas ao escrutínio da sociedade", considera o advogado. "O que você vai medir nas redes? Como? Só a transparência e a criação de protocolos para termos mais respostas do que interrogações", afirma.

Clipagem de posts

Na prática, o monitoramento da Defesa sob Bolsonaro fazia uma espécie de "clipagem de redes" sobre temas militares e vasculhava publicações de usuários que citavam palavras-chave de interesse do ministério fossem eles pessoas públicas ou não.

Por exemplo, os documentos mostram tuítes como "destaques" das redes e, em seguida, os autores dessas postagens são classificados segundo "sentimentos" positivos ou negativos em relação à pasta. No total, 178 perfis foram listados por postagens desfavoráveis ao ministério.

"Não sei o que faziam com isso, mas claramente pra mim são relatórios que avaliam pessoas", diz a pesquisadora Rose Santini, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e diretora do Netlab, que analisou os relatórios a pedido do Núcleo.

Posts golpistas

O Núcleo analisou quase 800 posts coletados pelo monitoramento da pasta entre 1.out.2022 e 8.jan.2023, 58% deles considerados favoráveis ao ministério. Essas postagens incluíram pedidos por um golpe de Estado, notícias falsas, elogios a torturadores, ataques às urnas e ameaças contra autoridades, incluindo deputados e ministros.

Na época, sob a chefia do general Paulo Sérgio Nogueira, a Defesa estava credenciada pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) para fiscalizar as eleições no país. Contudo, após a vitória de Lula, a pasta passou a lançar dúvidas contra as urnas e consentiu com os protestos antidemocráticos que resultaram nos atentados de 8 de janeiro.

LISTA DE INFLUENCIADORES. O monitoramento da Supernova fez listas de "perfis mais influentes" para cumprir exigências de militares. O formato foi definido a pedido do ministério e a "baixa qualidade" dos documentos foi criticada por especialistas consultados pelo Núcleo.

"A identificação dos perfis mais influentes tem que se basear em alguma métrica, mas eles não trazem base numérica de nada", critica Santini. "Não tem nenhuma prova ou critério para definir o que está lá e ainda marcam pessoas como sendo apoiadores ou não", diz a professora da UFRJ.

Tuíte coletado pela terceirizada que dizia que a Constituição não autoriza as Forças Armadas a darem um golpe foi marcado como "negativo" à pasta

Já o pesquisador Fabio Malini, professor da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) e coordenador do Labic, avalia que os relatórios acabam "criando um sistema de informações que confirma preconceitos e vieses ideológicos".

"Isso ajuda a entender o contexto que alimentou aquele posicionamento até o 8 de janeiro, de certa 'pseudoneutralidade' com relação a quem tentava um golpe", diz o professor, que também avaliou os relatórios a pedido da reportagem.

O que previa o contrato de monitoramento da Defesa com a Supernova

A descrição do serviço contratado foi a seguinte:
"Monitorar de forma permanente (24x7), no período de 12 (doze) meses, a imagem do órgão nas redes sociais, incluindo blogs. O resultado da ação deve indicar repercussão (o quê), perfis influenciadores (quem), mídia (onde, quando), reputação e polarização (como), tendência, cenário brasileiro e demais informações estratégicas oportunas à tomada de decisão, tal como engajamento negativo. Fatos intempestivos que tenham obtido destaque no ciberespaço, e que de alguma forma estejam relacionados ao objeto monitorado, serão objeto de alerta à contratante. O resultado deve ser apresentado de forma clara e por intermédio de gráficos informativos e textos explicativos".

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INTELIGÊNCIA E DECISÃO. Em 2020, a contratação do serviço foi sugerida por militares para apoiar "a eficiente tomada de decisão nos âmbitos políticos e estratégicos, bem como representação Institucional nas redes sociais e em outros canais de comunicação" da pasta, conforme o estudo técnico preliminar que planejou a licitação. Na ocasião, o pedido também mencionou a utilidade da coleta de redes para fins de inteligência. "Esses produtos passeiam na área demandada da ASCOM-MD, como produtos como (sic) ferramentas para uma capacidade decisória de autoridades ou da consciência situacional para o setor de Inteligência, deste ministério", diz. O contrato com a Supernova foi assinado oito meses depois, em fev.2021.
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Você pode consultar o edital do pregão, o estudo técnico preliminar e o contrato dos serviços de monitoramento de redes da Supernova neste link

ANÁLISE DE SENTIMENTOS. Sobre a categorização de posts golpistas como "positivos", o Ministério da Defesa disse ao Núcleo que "os critérios de análise de sentimento e polarização eram feitos por definição exclusiva da empresa" e que o conteúdo dos relatórios era "de inteira responsabilidade" da terceirizada.

A empresária Leila Alcaires, sócia da Supernova, no entanto, ressalta que os documentos seguiram padrões solicitados pela pasta. "Eles nos contrataram, foi feita a reunião, alinhamos quais informações eles queriam, nós as fornecemos e eles as aceitaram", diz. "Se estava ruim, eles podiam reclamar, mas nunca reclamaram", ressalta.

No entanto, Alcaires não soube explicar à reportagem qual método sua empresa usou para classificar esses posts e perfis. "Eu acho que nossa analista gerava uma avaliação de sentimento automática no sistema e o relatório dava os destaques para posts, notícias e os volumes de menções, mas não sei se ela conferia ou não", afirma a empresária.

Na época, o ministério pagava R$ 47 mil anuais à Supernova, valor que é considerado baixo para o serviço. "Eu paguei para trabalhar!", lamenta Alcaires. "Entrei na licitação e, culpa minha, baixei o preço, ganhei o contrato e fiquei, mesmo não lucrando nada", diz.

Na avaliação de Malini, esse tipo de precarização é comum no setor de monitoramento de redes. "Esse clima de falta de recursos produz interpretações enviesadas do debate público ao gosto do cliente", avalia. "O mercado quer trazer 'evidências', 'provas', mas tudo é muito precário e gera a entrega de um conteúdo bajulador", diz o pesquisador da UFES. "Se falta método, vale a voz do cliente", conclui.

Pedidos de golpe foram monitorados

Os relatórios eram construídos a partir do monitoramento de termos-chave definidas a pedido da pasta. Um deles foi "intervenção militar".

Nos dias seguintes à derrota de Bolsonaro nas eleições, houve um pico de menções à expressão, segundo os documentos. Só em 1.nov.2022, ela foi usada 80,9 mil vezes nas redes. No período, também saltaram postagens que mencionavam o "comando militar".

Relatórios apresentavam volumes totais de menções com base na pesquisa de termos indicados pelo Ministério da Defesa; um deles era "intervenção militar"

NÃO TENHO NADA COM ISSO. Ao Núcleo, o ministério negou qualquer responsabilidade sobre os relatórios que contratou e disse que "o conteúdo dos arquivos gerados pela empresa contratada não representa o monitoramento realizado pela Defesa, tampouco o posicionamento oficial da pasta em relação a qualquer assunto".

O ministério também sugeriu que os documentos foram inúteis à pasta e que o material "não gerou ato ou mudança de direção nos processos existentes na instituição, bem como nas ações no âmbito da política de assessoramento de comunicação social", apesar do serviço ter sido contratado para esse objetivo e renovado ao menos uma vez.

Leia a íntegra das respostas do Ministério da Defesa

1. Finalidade dos relatórios: qual foi o uso dado pelo Ministério da Defesa aos relatórios de monitoramento de redes produzidos pela Supernova entre out/22 e jan/23? Os arquivos tiveram alguma serventia à inteligência ou à tomada de decisão da pasta no período após as eleições, particularmente em relação aos bolsonaristas que ocuparam as áreas de quartéis pelo país inteiro?

Resposta: O produto (relatório de monitoramento de redes sociais) era contratado e fornecido à ASCOM do Ministério da Defesa (ASCOM MD) com a finalidade de execução do trabalho do setor, que, entre outras funções, presta assessoramento de comunicação às diferentes áreas do Ministério. Tal material não gerou ato ou mudança de direção nos processos existentes na instituição, bem como nas ações no âmbito da política de assessoramento de comunicação social.

2. Impacto na imagem do órgão: por que os relatórios consideravam pedidos de intervenção militar, notícias falsas ou até mesmo chamados para a invasão da praça dos três poderes "positivos" à imagem do órgão? E por que críticas que não falavam mal do Exército, mas eram postadas por gente "à esquerda", eram "negativas"?

Resposta: Para a confecção dos arquivos, a ASCOM fornecia apenas as palavras-chaves, sendo que o conteúdo era produzido pela empresa e de sua inteira responsabilidade. Da mesma forma, os critérios de análise de sentimento e polarização eram feitos por definição exclusiva da empresa. Sendo assim, o conteúdo dos arquivos gerados pela empresa contratada não representa o monitoramento realizado pela Defesa, tampouco o posicionamento oficial da pasta em relação a qualquer assunto.

3. Orientação à terceirizada. Quais foram as orientações dadas pela pasta à terceirizada para guiar o monitoramento de redes no período relatado, inclusive no que se refere a termos-chave de interesse e premissas para esse tipo de classificação de sentimentos (positivo/negativo)?

Resposta: No período mencionado não houve por parte da ASCOM orientações adicionais para a empresa, mantendo-se as palavras-chaves definidas anteriormente para a execução do trabalho de monitoramento de redes sociais. Conforme explicado, os critérios de análise de sentimento, polarização eram feitos por definição exclusiva da empresa. 

4. Posicionamento da pasta. Os relatórios também mostram que a pasta listou influenciadores que estavam pedindo "Fora Múcio" nas redes sociais, em jan/23, já no governo Lula. Por que o órgão decidiu listar perfis críticos ao ministro? Qual foi o uso destinado a esses informes?

Resposta: A ASCOM não listou em nenhum momento perfis críticos ao Ministro da Defesa. Conforme já explicado, o conteúdo dos relatórios era produzido exclusivamente pela empresa com base em palavras-chaves previamente fornecidas pela ASCOM.

5. Monitoramento de redes pela pasta. Após o fim da prestação do serviço por parte da Supernova no início de fevereiro de 2023, o Ministério da Defesa não renovou o contrato e alterou os termos da prestação do serviço de monitoramento, excluindo as redes sociais. Por qual motivo? Hoje, a iClipping, contratada deste ministério, não faz esse serviço, segundo o contrato que vi.

Resposta: Por decisão da administração o contrato não foi renovado. O trabalho de monitoramento de redes sociais atualmente é desenvolvido pela equipe da própria ASCOM.

Reparei que o edital de referência da licitação que contratou a Supernova menciona que os materiais deveriam ser distribuídos via mobile e e-mail. É possível confirmar quem mais recebia esses relatórios e se essa lista incluía mais servidores da pasta, além da equipe de ASCOM?

Resposta: O produto (relatório de monitoramento de redes sociais) era fornecido pela empresa somente à ASCOM.

Como fizemos esta reportagem?

Após obter via LAI a íntegra dos relatórios de redes produzidos pela Supernova entre out.2022 e fev.2023, a reportagem leu os cerca de 250 relatórios fornecidos pelo ministério e tabulou os conteúdos levantados em cada um deles.

Esse levantamento foi feito de forma manual porque o repórter sentiu a necessidade de revisar os relatórios um a um e as ferramentas a base de inteligência artificial testadas para extrair alguns dos dados necessários dos documentos retornavam informações incompletas, o que demandaria revisão humana, de todo modo.

A partir disso, usamos as tabelas dinâmicas do Google Sheets para fazer cruzamentos básicos de dados, quantificar algumas informações e criar rankings sobre perfis, sentimentos ou menções mais frequentes no conjunto de relatórios.

Além disso, os posts levantados foram marcados por nossa análise como sendo de teor golpista caso lançassem dúvidas sobre o processo eleitoral brasileiro ou incentivassem uma intervenção militar no país. Por fim, também checamos um a um os links incluídos nos relatórios para checar quais permaneciam online ou foram removidos das plataformas.

Também concedemos acesso a esses documentos a André Boselli, Rose Santini e Fabio Malini, especialistas entrevistados nesta reportagem, e solicitamos a opinião deles sobre o material obtido. Você também pode consultar a íntegra do material neste link.

Os resultados desta investigação do Núcleo contém limitações. São elas:

  • Os arquivos revisados cobrem apenas os últimos cinco meses de serviços prestados pela Supernova, sendo que o contrato durou dois anos. Isso pode ter introduzido vieses temporais em nossa análise.
  • Não conseguimos determinar com certeza quais usos específicos o Ministério da Defesa deu aos relatórios ou qual foi o impacto de seu uso interno na pasta, fora as descrições e justificativas disponíveis para a contratação do serviço nos documentos oficiais a que tivemos acesso.
  • Devido à falta clareza nos relatórios, não conseguimos descobrir quais foram as metodologias e critérios usados pela Supernova e nem determinar com certeza por que, por exemplo, tuítes golpistas foram catalogados como positivos. A justificativa é que essa classificação foi automática, feita a princípio sem revisão humana.
  • Como a tabulação dos dados foi feita de forma manual, pode haver uma pequena margem de erro nos quantitativos informados, como o número de posts com teor golpista ou a quantidade de publicações removidas.

Tentamos mitigar algumas dessas limitações com dúvidas encaminhadas à própria terceirizada, por meio de duas conversas com a sócia da empresa, e ao Ministério da Defesa via assessoria de imprensa, além da consulta a três especialistas nas áreas de redes sociais e inteligência de fontes abertas.

Também revisamos mais de 100 páginas referentes ao contrato, o edital de referência e o estudo da pasta que licitaram o serviço da Supernova. Por fim, também usamos fontes abertas na internet, como notícias e posicionamentos oficiais, para relembrar e contextualizar o momento histórico da produção desses relatórios.

Reportagem Pedro Nakamura
Arte e Visualização Rodolfo Almeida
Edição Alexandre Orrico

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