Reportagem Beá Sans e Juliene Moretti
Arte Rodolfo Almeida
Edição Sérgio Spagnuolo e Alexandre Orrico
A BRIGA para ganhar o público jovem no Brasil tem levado duas crescentes redes sociais chinesas, TikTok e Kwai, a uma disputa ferrenha, envolvendo estratégias agressivas de aquisição de novos usuários e acusações de roubo de perfis e conteúdo.
No centro dessa disputa estão programas de bonificação que pagam centavos para usuários passarem horas na plataforma ou um pouco mais para indicarem novas pessoas. O prêmio: um pedaço do mercado no Brasil, um dos maiores do mundo para as redes sociais, com mais de 130 milhões de usuários ativos por mês.
Conceder certos benefícios é uma prática comum em aplicativos em geral, mas essas redes chinesas parecem estar levando a estratégia a um novo patamar de concorrência no país, colocando usuários em uma jornada por dinheiro fácil que não é tão fácil assim, mais e mais tempo conectados, em busca de recompensas em dinheiro.
PROCRASTINAR NAS REDES NUNCA FOI TÃO LUCRATIVO – NEM TÃO TRABALHOSO.
A imprensa mordeu a isca. Uma busca rápida no Google mostra matérias, inclusive de veículos de renome, descrevendo as benesses desses programas e como fazer para ganhar dinheiro. Alguns sites, inclusive, ao fim de seus textos tentam convencer o leitor a usar códigos próprios de indicações.
Em outras redes, pululam depoimentos de pessoas que alegam terem embolsado centenas de reais em poucas semanas, compartilhando códigos de acesso, dando audiência a vídeos de outros usuários ou convidando pessoas para se juntarem aos programas em uma espécie de esquema pirâmide da influência social.
Menções no Facebook e no Instagram com a combinação dos termos dinheiro
e Kwai
ou TikTok
dispararam a partir de abril deste ano, com pessoas compartilhando em peso seus códigos de referência para que novos usuários entrem nas campanhas – com o Kwai levando a melhor no total de menções e interações.
No Twitter, os convites e indicações também comem soltos. Um perfil oficial do Kwai no Brasil, inclusive, foi suspenso da rede social. Nenhuma das duas empresas especificou à reportagem o motivo do banimento, mas as regras da plataforma determinam que contas podem ser suspensas no caso de spam, colocar segurança de páginas em risco ou comportamentos abusivos.
DINHEIRO OU DANCINHAS
Diferentemente de aplicativos da chamada gig economy como Uber, DogHero e Rappi, por exemplo, nos quais as pessoas ganham dinheiro prestando serviços, o maior atrativo de Kwai e TikTok tem sido a possibilidade de ganhar alguns trocados tendo como motivação apenas a preguiça, meramente navegando pelo app.
AFINAL, QUEM NÃO QUER GANHAR GRANA PRA VER VÍDEOS LEGAIS?
Os programas de remuneração, de certa forma, basicamente “compram” novos usuários, já que estimulam um comportamento artificial e não orgânico de utilização das plataformas – ver mais para ganhar mais.
A metodologia é simples e tentadora, além de não exigir status de influencer: o tempo procrastinado nos aplicativos pode ser convertido em dinheiro de verdade.
Um dos pontos negativos desses programas, no entanto, é que é necessário muito tempo na frente do celular para acumular os valores mínimos de retirada, com regras frequentemente difíceis de achar e burocráticas para ler. Enquanto isso, as plataformas ganham com campanhas publicitárias de anunciantes que pagam bastante dinheiro pela atenção dos usuários.
A prática ganhou força neste ano com o Kwai, concorrente direto do TikTok que, embora tenha sido criado antes, corre atrás para abocanhar o sucesso de seu rival, pertencente à gigante chinesa ByteDance e que soma mais de 2 bilhões de downloads pelo mundo.
Apresentado como uma plataforma de vídeos curtos e divertidos, o Kwai pertence à empresa chinesa Kuaishou Technology (em chinês, quer dizer algo como “mão rápida”). Assim como seu concorrente, exibe recursos fáceis de edição, como filtros, trilhas sonoras e efeitos especiais. Os dois apps têm interfaces bastante parecidas.
O Kwai surgiu em 2011, cinco anos antes que o TikTok, originalmente para o compartilhamento de GIFs. O negócio deslanchou quando tornou-se uma rede social de vídeo, atraindo moradores da área rural chinesa, que passaram a transmitir o estilo de vida local. Posteriormente, caiu no gosto também do público na Índia, de onde tanto o Kwai quanto o TikTok (junto a dezenas de outros app chineses) foram banidos no ano passado em meio a tensões com a China e preocupações sobre privacidade. Em fevereiro, a empresa abriu capital em Hong Kong, captando US$ 5 bilhões -- então a maior oferta pública inicial de ações (IPO) desde 2019.
Na Ásia, o Kwai bate seu concorrente em volume levantado pelo chamado shop streaming -- quando é possível fazer compras diretamente pelo app de marcas que fazem sua publicidade via streaming. O recurso ainda não está disponível no Brasil, mas em uma entrevista à Fast Company, a empresa disse pretender focar em transmissões ao vivo como oportunidades de venda no país.
Sem operações nos Estados Unidos, a chegada por aqui foi o primeiro passo na estratégia da Kuaishou de expansão na América Latina: este ano, estreou ainda em Colômbia, Argentina e México, enquanto ampliou sua atuação no Brasil. Pelo LinkedIn, pode-se constatar ao menos 20 profissionais atuando no escritório em São Paulo, entre brasileiros e chineses, mas a empresa não confirma o número. Em meados de maio, a companhia anunciou a contratação de nomes focados no marketing e conteúdo e vem divulgando com frequência vagas de trabalho no LinkedIn.
Recentemente, fechou ainda parcerias com a Band, que inclui filtros customizados com a canopla da emissora, e com o Botafogo. Em abril, lançou a primeira campanha institucional no Brasil, batizada de "KKKKwai - Baixe o lado divertido da vida". A publicidade vende a plataforma como um espaço para o compartilhamento do bom-humor cotidiano brasileiro, estrelando dois dos mais populares influenciadores no app até agora: o paraibano JP Venancios, que tem 2,4 milhões de seguidores, e a fluminense Tailane Garcia, seguida por 1,6 milhão de pessoas.
Segundo a empresa, o direcionamento de tráfego no app favorece contas com um número mediano de seguidores, permitindo que criadores de conteúdo não tão populares tenham visibilidade. Foi isso que provavelmente favoreceu sua expansão inicialmente pela China rural e o que não deixa de ser o caso dos agora influencers JP e Tailaine.
Cofundador da companhia, o empresário Cheng Yixiao descreveu o Kwai como um lugar que "gratifica pessoas ordinárias". Navegar pela rede social passa justamente essa impressão: a estética no geral é menos glamurosa e dançante do que tipicamente é no TikTok. Famosos não chegaram à rede, vídeos de gastronomia ensinam a fritar bisnaguinha e casais se multiplicam em contas conjuntas fazendo piadas e simulações sobre fases do relacionamento.
Até chegar, mais recentemente, ao Kwai Golds, que funciona no app brasileiro desde fevereiro e consiste numa espécie de desafio para quem navega no aplicativo encontrar um pote de ouro no final, guardadas as devidas proporções da distribuição de dinheiro em massa. Assistir vídeos, fazer check-ins diários e convidar pessoas para a plataforma estão entre os "desafios" que rendem moedas fictícias. A partir de um determinado valor de Kwai Golds, é possível convertê-las em reais, transferir para qualquer conta via Pix ou carregar celulares pré-pagos.
TUDO SÃO DINHEIROS
Segundo o Wall Street Journal, a Kuaishou opera com um prejuízo de quase US$ 9 bilhões devido a estratégias de atrair novos usuários. Mas a empresa considera a tática eficaz: no primeiro trimestre deste ano, registrou 26 milhões de usuários ativos no Brasil na média mensal.
Ao menos, parece ter assustado o TikTok, que lançou sua própria campanha de remuneração, o TikBônus, anunciada como temporária até o dia 31 de dezembro deste ano. Tal qual no Kwai, o sistema funciona com base no cumprimento de pequenas missões que, uma vez devidamente cumpridas, são recompensadas com rubis, moeda virtual fictícia que pode ser convertida em real (arbitrariamente R$1 = 10.000 rubis).
Para além dos já comuns “códigos-convites”, outras missões remuneradas consistem em assistir a vídeos por períodos determinados de tempo, postar com certa periodicidade ou meramente ler as regras do aplicativo. Para participar, usuários precisam ter mais de 18 anos, serem residentes no Brasil e possuírem uma conta PayPal ou de algum banco brasileiro que possa ser vinculada ao app.
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Em fevereiro do ano passado, o TikTok já havia feito um aceno à estratégia ao oferecer até R$100 para quem trouxesse novos usuários, incluindo R$40 em créditos para celulares pré-pagos. Além disso, passou a ser possível também enviar gorjetas a influencers – o TikTok fica com metade do valor.
As informações públicas sobre esses programas são escassas. A empresa não quis abrir números de investimento com o TikBônus. Ao Núcleo, a assessoria de imprensa do TikTok no Brasil apenas respondeu que o objetivo do programa é “criar uma grande experiência para a nossa comunidade por meio de novos recursos e explorar oportunidades para criar valor para a nossa comunidade e marcas”.
Outra forma de lucrar é pela prática de gorjeta. Usuários podem receber quantias simbólicas de seus seguidores, em um equivalente virtual do passar o chapéu após uma apresentação artística.
CONQUISTAR AS MOEDAS, PORÉM, NÃO É TÃO SIMPLES COMO PARECE: EXIGE ALGUM RETORNO REAL PARA A PLATAFORMA.
Não basta convidar um amigo a criar uma conta, por exemplo, é preciso que ele faça isso em até 72 horas e assista três minutos de vídeo por dia no período de três a dez dias. Caso não haja movimentação no app por um mês, o balanço é zerado. As regras, a cotação da moeda e a forma como a pontuação é feita a cada objetivo cumprido não são claras ou explicitadas de maneiras simples aos usuários, o que tem levantado críticas entre aqueles que buscam o dinheiro fácil.
O Kwai foi evasivo ao responder ao Núcleo sobre as regras do Kwai Bônus, dizendo que o “mecanismo varia de acordo com a campanha em vigor”. Exige certa diligência para encontrar o detalhamento do desafio no aplicativo - e paciência para ler no celular um conjunto de regras que se estende por várias páginas.
CONTEÚDO SURRUPIADO?
O Kwai nos últimos meses tem tido que lidar com comentários negativos sobre a qualidade de seu conteúdo e a supostas práticas de “roubo de vídeos”.
A influenciadora Racky Lóng, por exemplo, disse ao Núcleo que baixou o app depois de ler depoimentos de pessoas retirando até R$20 por dia. No entanto, não se adaptou à plataforma e seus apelos repetitivos por indicações.
“No início tentei usar as tags que uso em outras redes sociais para procurar o que eu gosto, mas não encontrei nada, só conteúdo muito superficial, gente falando como ganhar dinheiro no app ou vídeos baixados do TikTok”, conta. “Passa um clima muito sufocante com as tais promoções limitadas para ganhar mais e mais.”
No começo de abril, um brasileiro que trabalhou nos escritórios chineses do Kwai divulgou um depoimento no YouTube criticando a política e a cultura da empresa. No vídeo de quase 50 minutos, Edvan Fleury descreve um ambiente de trabalho tóxico e xenofóbico, denuncia a prática de “roubo” de vídeos pela plataforma e argumenta não haver, por parte da empresa, nenhum interesse em qualificar o conteúdo compartilhado em sua rede.
Fleury denuncia ainda a falta de proteção aos dados dos usuários e acusa, inclusive, uma despreocupação da Kuaishou com a exposição de menores de idade. Publicado no dia 1º de abril, o vídeo teve mais de 100 mil visualizações.
Ao Núcleo, o assistente de marketing disse ter sido procurado pelo diretor de segurança do usuário do Kwai após seu depoimento ganhar repercussão.
“Ele confirmou que algumas dessas estratégias usadas no passado iriam passar por uma reformulação, pois criaram um departamento para cuidar dos usuários”, diz. “Mas infelizmente, pelo que eu vejo, a empresa ainda usa bots para roubar vídeos de outras plataformas e ter um conteúdo diferenciado.”
O Kwai, claro, rebate as críticas. “Questões ligadas a direitos autorais são tratadas com seriedade pelo Kwai. Quando desacordos com a política da plataforma são identificados, eles são removidos do aplicativo, mediante solicitação do detentor dos direitos autorais. Cada caso é cuidadosamente analisado e tratado diretamente com as partes envolvidas”, disse em comunicado por email Mariana Sensini, diretora da plataforma no Brasil.
Fleury atribui ainda ao Kwai Golds parte da responsabilidade pela má qualidade do que é compartilhado na rede social e pelo engajamento artificial na plataforma.
"Essa estratégia de dar dinheiro para os usuários vai atrair muita gente, mas não são usuários de qualidade, muito menos criadores de conteúdo interessantes, porque a maioria tá ali só pela suposta forma fácil de ganhar dinheiro."
- Edvan Fleury, ex-funcionário do Kwai
O Kwai disse que o desenvolvedor fez parte do quadro de colaboradores da Kuaishou na sede chinesa em 2018 e que, desde então, “houve mudanças expressivas nas estratégias e políticas adotadas pelos times globais e locais da empresa”. Reforçou ainda, sem especificar, que “estabeleceu normas e práticas rígidas no que tange direitos autorais, segurança e proteção de usuários menores de idade e curadoria dos conteúdos disponíveis no aplicativo”.
CLONE DE PERFIL?
Em maio, a dona de uma papelaria descolada de Belo Horizonte publicou um story também denunciando roubo de conteúdo pela rede. Luisa Dias tem mais de 40 mil seguidores no perfil de sua loja no TikTok e 130 mil no Instagram, mas descobriu que todo o conteúdo feito para vender seus produtos era reproduzido também no tal do Kwai, onde a Loja Criare já amealhou 15 mil possíveis clientes sem conhecimento de sua proprietária.
Segundo Luisa, uma seguidora, ao ver seu story, manifestou ter passado pela mesma situação e compartilhou o contato de Whatsapp de uma alegada funcionária do Kwai no Brasil, que lhe ofereceu, então, acesso ao perfil já existente na rede.
Questionado sobre mais esse caso, o Kwai confirmou ter sido procurado por Luisa, mas afirmou que a própria usuária solicitou a transferência da titularidade da conta, e não seu cancelamento.
A plataforma reiterou também que, “quando perfis em desacordo com suas políticas são identificados, eles são removidos do aplicativo mediante solicitação do detentor dos direitos autorais.”
COMO FIZEMOS ISSO
O Núcleo reuniu informações já divulgadas em sites nacionais e estrangeiros sobre a criação e atuação do Kwai no exterior e, mais recentemente, no Brasil. Além disso, buscou o termo em outras redes sociais, como o Twitter e o Instagram, para achar o que era comentado sobre o aplicativo pelos usuários. A partir daí, entramos em contato com alguns deles, para saber mais sobre suas experiências. Posteriormente, entramos em contato com as assessorias do Kwai, do TikTok e do Twitter no Brasil, enviando perguntas mais de uma vez, quando se fez necessário.
Os dados de menção ao Facebook e Instagram foram obtidos via a ferramenta de dados CrowdTangle.
O Núcleo também baixou os aplicativos do Kwai e do TikTok para entender como funcionam os sistemas de remuneração, mas, infelizmente, não conseguiu acumular moedas para trocar por reais.