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Reportagem produzida com o apoio do Pulitzer Center*


O INFECTOLOGISTA Francisco Cardoso avisou seus seguidores no Telegram. “Devido às políticas dessa plataforma, os vídeos sobre aquilo que todos sabem o que é estão sendo postados no Telegram e no Twitter”, disse em mensagem copiada de seu Instagram.

A mensagem oculta que “todos sabem” é conteúdo antivacina.

Canais como o dele aproveitam a leniência do Telegram com moderação de conteúdo para espalhar desinformação sobre vacinas, algo que já foi denunciado anteriormente. Mas, agora, um levantamento exclusivo produzido pelo Núcleo em parceria com o Pulitzer Center dá uma ideia da dimensão desses grupos.

Desde o início da pandemia, 16 canais e grupos ligados a médicos negacionistas angariaram 192 milhões de visualizações. Em 2022, enquanto havia uma percepção de que os ataques à vacina estavam diminuindo, na verdade a audiência duplicou, de 79 milhões no ano anterior para 167 milhões de views.

E, mesmo em 2023, eles continuam ganhando atenção: em apenas 3 meses já somam mais de 20 milhões de impressões desses conteúdos.

Além da grande exposições dentro desses mesmos canais, eles também acabam se tornando fonte de informação e nutrem outros grupos:

Antes de se impressionar com os números, tenha em mente que eles estão ainda subestimados.

Primeiro, consideram somente os dados de engajamento de mensagens que foram geradas no próprio canal ou grupo – não aquelas encaminhadas para lá. Além disso, não é possível extrair dados de grupos que se tornaram privados e canais que foram suspensos.

Alguns deles são bem importantes nesse universo, como o canal Médicos Pela Vida, que foi suspenso em janeiro pelo Supremo Tribunal Federal (STF) pelo envolvimento nos atos antidemocráticos em Brasília em 8.jan.2023.

Outro canal importante que agora é privado e, portanto, inacessível para nós, é o da médica Maria Emília Gadelha Serra, uma das fundadoras do movimento antivacina no Brasil.

SAIBA MAIS - O caso do Médicos Pela Vida

O grupo Médicos Pela Vida (MPV) surgiu primeiro como apoio às decisões de Bolsonaro no incentivo ao tratamento precoce e, depois, se estabeleceu como o principal grupo de médicos a atacar as vacinas na internet.

O Núcleoabordou a presença do MPV no Instagram, e esse novo levantamento dá dimensão do alcance deles no Telegram. Das 192 milhões de visualizações de mensagens em canais e grupos de médicos, 162 milhões são nas redes com nomes e arrobas ligados ao MPV.

Entre outubro e janeiro, o canal batizado Médicos Pela Vida migrou da pauta antivacina para a política, mudou o nome para SOS Forças Armadas e Geopolítica & Atualidades, e se tornou um ativo promotor da tentativa de golpe eleitoral.

No dia 8 de janeiro, o dia da tentativa de golpe, o canal atingiu mais de 2,5 milhões de visualizações.

Apesar do banimento do STF, segue facilmente acessível, via números de telefone internacionais ou VPN.

“Há todo um mercado de compra de chips descartáveis e o próprio Telegram agora comercializa números de telefone para usuários criarem contas anônimas”, comenta o cientista da computação Athus Cavalini, da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), que monitora a atividade dos grupos antivacina no Telegram.

Pelas configurações do Telegram, não é possível saber sem uma intervenção judiciária quem é o verdadeiro dono desses perfis. Mas todos fazem menção ao MPV já no nome e basicamente repercutem conteúdos do ecossistema do Médicos pela Vida "real", com CNPJ registrado em Recife.

Fora do Telegram, o grupo promove lives, congressos e se tornou uma central de produção intelectual anticientífica. Supostamente, atacam somente as vacinas da Covid, mas recentemente a página fez uma postagem associando vacinas em geral ao autismo.

Para saber mais sobre o MPV, escute o episódio do Ciência Suja, que faz parte da mesma série de reportagens apoiadas pelo Pulitzer Center.

Os canais com o nome ou endereço que mencionam o termo"Médicos pela Vida" são disparados os líderes de audiência e engajamento entre os canais de médicos, como mostra o gráfico abaixo.

No mapeamento feito pela reportagem com 56 canais e grupos do Telegram, ele só perde para um canal de cunho conspiracionista, que tem o emoji de um ET em sua imagem de capa e os dizeres "100% Bolsonaro" na descrição. Ele também foi suspenso pelo STF.

2023 e a coisa continua feia

É notável a perda de engajamento direto (como reações, respostas ou encaminhamentos) e o “requentamento” de boatos sobre vacinas nos grupos e canais analisados, mas mesmo assim eles seguem com uma audiência considerável.

As visualizações nessas redes, em conteúdos classificados como antivax, nos três primeiros meses de 2023 já correspondem à metade do total de 2022.

Com a pauta da saúde perdendo força, já que a pandemia está em um momento mais tranquilo, o discurso foi tomando outras formas.

"Percebemos agora uma maior predominância dos canais de grupos conspiracionistas", comenta Athus Cavalini, da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), que monitora a atividade dos grupos antivacina no Telegram com o grupo Observa Icepi.

Não à toa, desde a suspensão dos dois principais grupos em janeiro, quem tomou a dianteira foi o grupo "Selva & Aço", que compartilha, além de mentiras sobre as vacinas, conteúdos de apoio a Bolsonaro e teorias da conspiração, incluindo as teorias QAnon (sim, em 2023!), sob as quais a esquerda é composta por satanistas comunistas canibais e predadores de crianças, ao passo que Donald Trump e Jair Bolsonaro são os salvadores.

Para  citar um exemplo dessa transição entre política e saúde, outro grupo de médicos, o Médicos Pela Liberdade, agora divulga constantemente mensagens de um canal de conteúdo mais conspiratório, político e transfóbico.

Transfobia e homofobia, aliás, são outra pauta em ascensão nesse universo.

É comum encontrar mensagens avisando que querem transformar as crianças em gays e, logo abaixo, um vídeo contando “a verdade” sobre as vacinas. É mais um exemplo da importância do discurso de ataque aos imunizantes dentro de uma narrativa maior.

Desde que a pauta foi politizada, a recusa vacinal tem aumentado. "O cenário mudou desde que a extrema direita se apropriou de pauta", alerta o médico Peter Hotez, reitor da National School of Tropical Medicine, do Baylor College of Medicine em Houston, nos Estados Unidos.

Ajude o Núcleo a fazer investigações relevantes. Custa apenas R$10.

O Telegram acaba sendo um dos lugares onde essa aproximação é mais notada. Basta um passeio de minutos nos grupos antivacina para esbarrar com um discurso político ou conspiratório. A um ou dois cliques de distância, estão os canais de conteúdo neonazista.

Por conta das configurações do Telegram, não é possível mapear os responsáveis por essas redes. A plataforma tem dificultado o acesso da polícia a suspeitos de cometerem crimes, e por isso teve sua suspensão decretada na última quarta-feira.

Em um relatório de março de 2023, o Observa Icepi destaca o aumento de comunidades antivacina com tendência ao extremismo. E, na edição mais recente, um dos destaques é um "protocolo de desintoxicação pós-vacina".

Veja alguns exemplos de conteúdo antivacina

COMO FIZEMOS

Entre jan-fev.2023, mapeamos cerca de 100 perfis antivacina no Youtube, Instagram, Twitter e Telegram. Excluímos os políticos e celebridades que compartilhavam conteúdo antivax para não poluir os números, porque eles também postam sobre muitos outros assuntos.

Decidimos focar no Telegram por entender que essa era uma rede mais escondida, e boa parte do que estava sendo compartilhado ali (e o alcance desse pessoal) era desconhecida pela sociedade.

Com o levantamento em mãos, analisamos manualmente os números em busca dos perfis que tinham mais audiência, e focamos a análise nos grupos de médicos. A ideia foi entender como o engajamento deles mudou durante a pandemia e a participação deles no ecossistema antivacina. Como métricas de engajamento, usamos visualizações e encaminhamento das mensagens.

ℹ️
* Para saber mais sobre a estruturação das redes antivacina no Telegram e, em especial, sobre o MPV, escute o novo episódio do podcast Ciência Suja. Ele faz parte da mesma série de reportagens especiais feitas em parceria com o Pulitzer Center. Também foi publicada uma reportagem na Veja Saúde sobre a queda nas coberturas vacinais e o papel da desinformação nisso.
Investigação Chloé Pinheiro
Dados Henrique Rieger
Arte e gráficos Rodolfo Almeida
Edição Sérgio Spagnuolo