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Existe uma pequena iniciativa de direita com tendências militaristas e ufanistas que talvez você nunca tenha ouvido falar.
Nos últimos dois anos ela colocou de pé uma rede social, um portal de notícias, uma plataforma de vídeos, um intermediador de pagamentos e assinaturas, um agregador de links e até um banco que não é banco, além de ter um sistema de investimentos em criptoativos.
O nome dessa rede é Pátria, fundada por um casal de entusiastas militares (do tipo que defende bomba atômica para o Brasil) que possuem fortes laços com graduados militares brasileiros -- e, óbvio, são ferrenhos apoiadores de Jair Bolsonaro.
É importante porque…
- Mostra iniciativa da extrema-direita de organizar um ecossistema de redes sociais e meios de pagamentos, buscando alternativas para os controles e moderações das maiores plataformas
- Assunto deve esquentar durante o próximo ano, quando a polarização política nas redes vai ficar cada vez mais evidente por causa das eleições. Extremistas podem procurar novos abrigos para discursos ofensivos, propaganda e desinformação
O assunto é importante porque mostra a criação de um ecossistema de abastecimento de serviços digitais para "patriotas" e defensores incondicionais do presidente.
Redes assim podem rapidamente ser usadas para escapar de monitoramento e das regras das grandes empresas de tecnologia -- as quais têm tentado (mas nem sempre conseguido) suprimir e até banir usuários e influenciadores radicais que espalham desinformação e promovem a polarização política e negacionismo à ciência, seja moderando discurso ou recursos de monetização.
Nos EUA, por exemplo, redes pequenas utilizadas pela extrema-direita, como Gab e, principalmente, Parler, ajudaram a organizar e articular os ataques à sede do Congresso norte-americano em 6 de janeiro de 2021. O site de jornalismo ProPublica mostrou como isso aconteceu.
O Núcleo considerou importante falar sobre essa rede porque poucos conheciam o Parler, que agregava apoiadores de Trump, antes da invasão do Capitólio.
Ignorar redes extremamente politizadas e que operam abaixo do radar não significa que não possam se tornar um problema mais pra frente, pelo contrário -- elas crescem em seus nichos, mas ficam ocultas do escrutínio público.
É preciso deixar claro que essa rede não passa de uma estrutura tecnicamente rudimentar e, até agora, com pouca adesão, sem laços institucionais com governos ou militares. Nenhuma ilegalidade foi encontrada.
Um desafio dessa nova iniciativa de apoiadores bolsonaristas é que pouca gente parece querer utilizar suas rede e serviços.
Isso inclui seus criadores -- Joarley Moises Alves dos Santos (consultor do setor de defesa), que usa predominantemente o seu canal no YouTube, e sua parceira Camila Araújo dos Santos.
O site de vídeos, PátriaTube, é bem diferente das plataformas de vídeo que as pessoas estão acostumadas: possui pouquíssimas mídias (cerca de 7 mil), as quais têm poucas visualizações (0 vídeo mais visto tem menos de 9 mil views).
O site do banco, Pátria Bank, tem links quebrados que não levam a lugar nenhum e, apesar de dizer ser um banco com meios próprios, pagamentos da plataforma de links da rede Pátria, a Seu.Bio, são processados via PayPal (o Núcleo fez uma compra).
Já a rede social, PátriaBook, parece um compilado de alguns poucos links de outras plataformas e posts sem engajamento.
Seus trending topics (#bolsonaro2022
, #brasil
, #patriabook
, #fechadocombolsonaro
, #stfvergonhanacional
) praticamente não mudam. As sugestões de amigos mostram perfis sem imagens, com nomes padronizados ou estranhos, com 10 ou nenhum amigo -- o que indica uma base artificialmente inflada.
Principal canal dos próprios desenvolvedores da plataforma e que, ao se cadastrar, você fica automaticamente amigo, o Pátria e Defesa tem cerca de 42 mil seguidores, o que indica o provável total de usuários cadastrados, dos quais muitos são provavelmente inativos ou falsos.
De acordo com email enviado pelo cana de YouTube de um dos criadores da plataforma ao Núcleo na noite de 20.out, "entendemos que é a partir da livre iniciativa dos envolvidos e dos seus usuários que a plataforma irá crescer e se consolidar, sem apoio, mas sem ser atrapalhados por governos, instituições públicas ou veículos de mídia."
LAÇOS COM MILITARES
A empresa por trás de tudo isso é a MM Fintec Sistemas Criptografados e Marketing Digital LTDA, aberta em 2001 em Belém (PA) e que tem Camila como sócia única.
Camila também é sócia única da Tech Mercado Sistema e Serviços de Investimentos Financeiros LTDA. Ela também foi sócia, junto a Joarley, da JMS Service LTDA, a qual consta em situação irregular, considerada inapta em 2008 pela Receita Federal, segundo dados da ferramenta Cruza Grafos e da Receita Federal.
Joarley é um tipo de influenciador do setor de segurança. Seu canal verificado de YouTube, o Pátria e Defesa, tem quase 700 mil inscritos e aborda tópicos como menos regulação para posse de armas e defesa de princípios bolsonaristas, inclusive intervenção militar.
Ele também é um grande defensor da bomba nuclear brasileira, com vários vídeos sobre o tema.
Em seu Instagram (aberto até a data de publicação), possui fotos com diversos militares da ativa e membros do primeiro escalão do governo, como o ministro da Ciência e Tecnologia, Marcos Pontes.
Não é só com o ministro-astronauta que Joarley tem entrada. No dia 25 de junho, o consultor foi recebido dentro do Palácio do Planalto, como consta na agenda do assessor especial da Presidência da República, Filipe Martins.
Representando o Sindicato Nacional das Indústrias de Materiais de Defesa (Simde), do qual é conselheiro fiscal, Joarley se reuniu naquela tarde com José Matheus Sales Gomes, que é assessor especial da Assessoria Especial da Presidência da República, segundo a agenda.
Como prova de intricados laços militares entre a rede Pátria e militares, no Simde, Joarley representou a BR Defesa (de onde, segundo seu LinkedIn, ele saiu em 2016), empresa cujos dois sócios estão ligados ao setor de segurança e que participou de licitações para serviços de blindagem junto a Exército e Marinha em 2014.
Um dos acionistas da companhia, Wolfgang Endemann, foi assessor da Polícia Militar de Belém até 2013 e compõe a Associação de Oficiais de Exército em Belém e teve auxílio emergencial bloqueado em abril de 2020. Nada indica que Endemann tenha conexão com a rede Pátria, e o Núcleo não tentou contato com ele.
O Núcleo entrou em contato para pedir entrevista (em 1º.out) e, subsequentemente, para esclarecimentos acerca de pontos desta reportagem (19.out), por meio de seis endereços de email que constam na inscrição das empresas citadas ou nos canais dessa rede.
Na quinta-feira (20.out) a noite, recebemos a resposta via email do canal Pátria e Defesa, assinada por sua "equipe de suporte":
"O PátriaBook é uma iniciativa privada, livre e independente. É uma plataforma de rede social com foco no debate público, independente de ideologia. Pautado na liberdade de expressão e tem como objetivo principal dar voz às pessoas para manifestação de seu pensamento, conforme previsto na Constituição Federal de 1988. Não temos financiamento público e nem de conglomerados financeiros."
DESOLAÇÃO DIGITAL
Uma coisa que chama atenção nos produtos digitais da rede Pátria é que tudo parece feito às pressas. Vários links no site não funcionam direito, o carregamento é lento.
A impressão principal ao entrar no PátriaBook é de que se trata de uma cópia mal feita do Facebook. Recursos que não funcionam, lentidão de carregamento, bugs, panfletarismo bolsonarista e muitos posts com zero likes (inclusive nos trends).
A rede também tem um mercado que anuncia itens como linguiça, medicamentos para infertilidade feminina vendidos apenas mediante prescrição médica, conjuntos de pratos e engajamento artificial em redes sociais.
"Entendemos que é a partir da livre iniciativa dos envolvidos e dos seus usuários que a plataforma irá crescer e se consolidar, sem apoio, mas sem ser atrapalhados por governos, instituições públicas ou veículos de mídia", disse por email ao Núcleo o canal de YouTube Pátria e Defesa sobre o PátriaBook.
Também salta aos olhos a baixa qualidade dos produtos da suíte Pátria -- cujo principal ponto de venda é apelar aos seus usuários com exaltação ao patriotismo.
PátriaBook:
- A rede social é deserta, lenta e cheia de perfis fake. Uma única página exige quase 20 MB de download de dados;
- Vídeos das trends possuem de 1 a 7 visualizações cada, quase não há posts com mais de 100 likes;
- O Núcleo estima que a rede tenha cerca de 41,5 mil perfis cadastrados (ao criar um perfil na rede, você automaticamente fica amigo do perfil PátriaBook, e esse é o total de amigos que esse perfil tem). Muitos parecem fake.
PátriaTube:
- Cópia do YouTube tem apenas 358 vídeos e não é atualizada há meses;
- O vídeo mais visto tem menos de 10 mil views.
PátriaBank:
- Não é um banco, não possui qualquer registro no Banco Central;
- Diz oferecer recursos de cobrança, maquininha de cartão, carnês, boletos e assinaturas recorrentes;
- Não confundir com o Banco Pátria.
PátriaZap: um aplicativo de mensagens para a Android, em desenvolvimento e com última atualização em maio do ano passado.
Seu.Bio: uma plataforma de assinaturas recorrentes. O principal usuário dessa ferramenta parece ser o youtuber bolsonarista Fernando Lisboa.
Mercado Moeda: dizem que é um sistema de investimento em criptomoedas com 1.238 usuários.
Banco que não é banco
Um dos produtos de Joarley é chamado Pátria Bank, que é alardeado como um banco, tem serviços de banco, mas de banco não tem nada.
Logo na primeira página do Pátria Bank os serviços são anunciados: conta digital, cartão internacional, máquina de pagamento. Mais para baixo, um depoimento: "Finalmente encontrei um banco digital que atende as minhas necessidades", diz a arquiteta Marcia Cardoso.
No entanto, uma simples busca reversa pela imagem da jovem loira no Google retorna uma foto aleatória utilizada na internet, inclusive em sites russos. O mesmo vale para o lojista Marcus Evangelista e para o autônomo Ernesto Amora -- exceto que este último é a foto de um modelo que faz parte da coleção de imagens "Melhores cortes para homens com rostos redondos".
O Pátria Bank não possui registro de funcionamento junto ao Banco Central e, até meados de agosto, tampouco tinha qualquer pedido de autorização em análise junto à autoridade bancária. A maioria dos links do site não funciona, como para o menu de Parcerias e Microcrédito.
O banco diz ter sede na Av. Paulista 1079, 8º andar, em São Paulo, mas lá funciona uma rede de coworkings.
Operações de crédito só podem ser realizadas por instituições autorizadas pelo BC, mas com as informações disponibilizadas pelo Pátria Bank, o regulador disse que não se pode afirmar que os serviços oferecidos pelo banco sejam operações de crédito.
Há ainda casos em que instituições de pagamento e arranjos de pagamento operam abaixo de determinados volumes
500 milhões de reais em transações de pagamento ou 50 milhões de reais mantidas em contas de pagamento pré pagas.
, o que as permite funcionar sem autorização da autoridade monetária.
Como o Pátria Bank não disponibiliza informações sobre seu volume operacional, não é possível saber se o "banco" se enquadra dentro desse limite estabelecido que o permitiria operar sem autorização do Banco Central.
COMO FIZEMOS ISSO
Desde meados de agosto estamos investigando essas redes sociais, usando-as e tentando entender seu funcionamento. O interesse por elas veio após encontrarmos o link de um influenciador de direita para o site Seu.Bio, e, como nunca tínhamos ouvido falar desse agregador de links, ficamos interessados em saber mais.
A partir dessa curiosidade inicial encontramos uma vasta rede de serviços e produtos digitais desenvolvida por pessoas com laços com militares.
Utilizamos a ferramenta Cruza Grafos, da Abraji, para entender as relações entre as empresas citadas e os desenvolvedores do site, especialmente o influenciador Joarley Moises.
Tentamos contato com seis diferentes emails públicos
[email protected] /
[email protected] /
[email protected] /
[email protected] /
[email protected].
associados aos sócios da MMFintec e pessoas ligadas a essa empresa, e obtivemos retorno em 20.out do endereço associado ao canal de YouTube Pátria e Defesa.
As perguntas enviadas pelo Núcleo foram:
A ideia é entender o que vocês estão fazendo e seu impacto. Peço que, se possível, respondam:
- De onde veio a ideia e a motivação de criar uma nova rede social?
- As redes sociais de vocês (Pátria Book e Pátria Tube) seriam uma forma de fugir da moderação de redes sociais tradicionais, como Twitter e Facebook?
- As redes do Pátria parecem focadas no apoio ao presidente Jair Bolsonaro. É possível dizer que é uma rede de apoiadores?
- O que difere o Pátria Book de redes como Gab, Parler, Mastodon, entre outras?
- Qual o número de usuários do Pátria Book? Que tipo de impacto a rede já teve? Qual a aceitação que ela tem?
- Qual a motivação para vocês criarem meios de pagamentos e um banco para patriotas? Pode informar a adesão que essas ferramentas tem, quantas pessoas já usam, com que frequência?
- O Pátria Bank tem registro no Banco Central? Vocês concedem crédito, como diz no site?
- Essa rede Pátria tem alguma relação com militares brasileiros? Há várias fotos no Instagram do Joarley com militares de alta patente.
A resposta do Pátria e Defesa, na íntegra:
Olá Sérgio, tudo bem
O PátriaBook é uma iniciativa privada, livre e independente. É uma plataforma de rede social com foco no debate público, independente de ideologia. Pautado na liberdade de expressão e tem como objetivo principal dar voz às pessoas para manifestação de seu pensamento, conforme previsto na Constituição Federal de 1988.
No momento não temos interesse em entrevistas, quaisquer informações sobre a plataforma estão contidas na mesma.
Não temos financiamento público e nem de conglomerados financeiros.
O canal Pátria e Defesa é pessoal e está apoiando o desenvolvimento da rede social.
Agradecemos o interesse, mas entendemos que é a partir da livre iniciativa dos envolvidos e dos seus usuários que a plataforma irá crescer e se consolidar, sem apoio, mas sem ser atrapalhados por governos, instituições públicas ou veículos de mídia.
Att
Equipe de Suporte
Reportagem Sérgio Spagnuolo e Laís Martins
Colaboração Lucas Lago
Edição Samira Menezes
Texto atualizado às 8h59 de 21.out para incluir resposta do Pátria e Defesa enviada por email na noite anterior.