Análise de hashtag bolsonarista revela coordenação para apoiar golpe nos EUA

Em apoio a narrativa de fraude, #GoTrumpReeleito envolveu influenciadores da direita e apoiou ações do governo Bolsonaro
Análise de hashtag bolsonarista revela coordenação para apoiar golpe nos EUA
Arte: Layla Cruz
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Reportagem Natalia Viana, David Nemer

Essa reportagem foi originalmente publicada pela Agência Pública e faz parte do Sentinela Eleitoral, projeto que investiga e analisa as redes de manipulação do debate público (fake news) nas eleições em parceria com o Berkman Klein Center for Internet & Society da Universidade de Harvard.


A cinco dias da eleição mais conflituosa da história dos Estados Unidos – que terminou com a invasão do Congresso americano –, Izaura Silva tuitou uma hashtag até então desconhecida: #GoTrumpReeleito. A hashtag foi usada em 27 de outubro para responder ao presidente americano Donald Trump, embora Izaura, de 72 anos e moradora de Goiânia, nunca tenha tuitado nada em inglês nem domine a língua. A conta de Trump foi suspensa depois que o Twitter determinou que ele estava espalhando desinformação sobre a eleição que perdeu, tentando manter-se no poder. Naquele tweet, a senhora não dizia mais nada além da hashtag. A hashtag novinha em folha: era a terceira vez que era usada, e Izaura nunca mais usou o termo.

Uma semana depois, entretanto, a hashtag #GoTrumpReeleito chegaria aos Trending Topics do Twitter no Brasil. No total, foram nada menos de 23.418 mil tweets entre outubro de 2020 e fevereiro de 2021. Uma análise detalhada dessas mensagens feita pela Agência Pública graças a uma bolsa da Fundação Nieman, em Harvard, revela que houve articulação com o propósito de influenciar o debate público. Essa articulação online teve consequências reais, respaldando ações de representantes eleitos no Brasil e manipulando eleitores que, como Izaura, acreditam que as eleições americanas foram fraudadas – e que as urnas brasileiras também serão – como parte de uma conspiração mundial “da esquerda”.

Entre as estratégias utilizadas estão o uso de slogans virais, memes, “desinfografia” (infográficos falsos) e mídia “recontextualizada”, segundo a categorização feita pelo Media Manipulation Casebook elaborado pela equipe da professora Joan Donovan, do Centro Shorenstein da Universidade Harvard.

Uma aula de manipulação do discurso público (4.11.2020)

A história da hashtag #GoTrumpReeleito explica como funciona a máquina de manipulação de discurso público das redes bolsonaristas e sua relação com a estrutura de desinformação trumpista. Primeiro, porque é uma hashtag construída para agregar o público brasileiro, mas que dialoga com outras hashtags usadas pela equipe de Trump, como #GoTrump e #GoTrump2020. Segundo, porque a mistura do português com o inglês demonstra que ela foi criada como uma arma para agregar brasileiros que moram nos EUA e influenciadores que falam inglês. Mesmo assim, ela foi amplamente adotada por perfis que não falam inglês, como é o caso de Izaura.

Depois do tweet de Izaura Silva, a hashtag foi esquecida até o dia das eleições nos EUA, 3 de novembro de 2020.

Em 3 de novembro de 2020, às 22h39, ela renasceu, a partir de um tweet singelo que mencionava apenas a hashtag e não teve nenhuma interação. A conta era de José Vladimir Antunes (@josevladantunes), que só tuitou 152 vezes e tinha 17 seguidores. José Vladimir é corretor de imóveis em Piracicaba e criou a conta em 2017. Depois de tê-la usado esporadicamente para retuitar influenciadores bolsonaristas como a deputada Bia Kicis (PL-DF), Carlos Bolsonaro (Republicanos-RJ) e Onyx Lorenzon (PL-RS), ele parou de tuitar em 25 de setembro de 2021.

Algumas horas depois, às 2h18 já do dia 4 de novembro, a hashtag também era usada, sozinha, para responder a uma postagem da conta de Sérgio Camargo, presidente da Fundação Palmares, conta que foi suspensa depois por violar as regras do Twitter.

Dessa vez, quem tuitava era Silvia, moradora de Jurujuba, Niteroi, autodescrita como “Patriota conservadora e cristã”. Assim como os perfis anteriores, ela só tuitou a hashtag. Depois, voltaria a usar a #GoTrumpReeleito apenas mais uma vez, em 6 de janeiro de 2021, dia da invasão ao Capitólio. “Espero que o povo americano tenha força pra lutar até a liberdade… #GoTrumpReeleito”, tuitou.

O nome de usuário de Silvia (@Silvia65840781) também foi criado automaticamente pelo Twitter, unindo o nome e uma sequência de números. O perfil de Silvia foi criado em setembro de 2019, mas operou apenas até 15 de novembro de 2021. Desde então, está dormente, sem nenhuma atividade.

Enquanto esteve ativo, o perfil retuitava e respondia a alguns dos principais influenciadores bolsonaristas, como Carlos Jordy(PL-RJ) e Luciano Hang (cuja conta foi suspensa em agosto por ordem do Supremo Tribunal Federal [STF]). Ajudava também a subir diversas hashtags atacando inimigos de Bolsonaro em momentos-chave, como #RenanVagabundo (usado várias vezes durante a CPI da Covid) e #ForaPacheco (usada para pressionar pela redução do preço dos combustíveis, em outubro de 2021). O perfil se engajou, ainda, na preparação da manifestação de 7 de setembro de 2021. Ela usou 17 vezes a hashtag #Dia7VaiSerGigante e oito vezes a hashtag #Dia7VaiSerGigantesco entre os dias 15 de agosto e 1o de setembro. No dia 1o de setembro, tuitou esta imagem:

Reprodução / Twitter

Dois meses depois, parou de tuitar.

Entre os primeiros 20 perfis que tuitaram entre 22h39 do dia 3 de novembro e 2h28 da manhã de 4 de novembro, seis pararam de tuitar em 2021.

Participaram do engajamento com a hashtag 1.303 contas com a mesma característica – hiperpartidárias e com nomes misturados com números, que foram responsáveis por 3.089 tweets. Boa parte parou de tuitar entre 2020 e 2021 e está dormente, mas segue ativa.

A maioria tuitou frases curtas em resposta a outros perfis maiores – que ajudariam a dar visibilidade à hashtag – desde influenciadores bolsonaristas como Paulo Figueiredo Filho, Terça Livre e Oswaldo Eustáquio até influenciadores da esquerda, como Jandira Feghali (PC do B-RJ) e Felipe Neto. Nesse caso, os tweets tinham tom de provocação para buscar respostas e impulsionar a interação com a hashtag.

Por volta das 2h30 da manhã (3h30 no Brasil) do dia 4/11, Trump fez um pronunciamento para seus apoiadores na Casa Branca. Embora os votos ainda estivessem sendo contados, ele reivindicou a vitória. “Essa é uma enorme fraude contra nossa nação”, afirmou. “Isso é uma fraude contra o povo americano e uma vergonha para o nosso país”, dizia o presidente americano, que alegava: “Nós francamente ganhamos essa eleição”. Foi nessa altura que Trump anunciou, desde a Casa Branca, que entraria na Suprema Corte para parar a contagem de votos. O vídeo foi rapidamente publicado no Twitter do ex-presidente, que depois foi suspenso.

Aqui no Brasil, em poucas horas, a hashtag #GoTrumpReeleito explodiria, chegando a ser mencionada mais de 20 mil vezes apenas no dia 4 de novembro, por 9.833 contas. Porém, outra coisa chama atenção: em sua grande maioria, a hashtag foi usada não para expressar esperança ou apoio à reeleição de Trump, mas sim questionamentos sobre fraudes nas urnas americanas.

Assim, ela funcionou como forma de traduzir e reunir, para o público brasileiro, diversas fake news sobre fraude nas eleições americanas. Para isso, contas brasileiras – muitas delas inautênticas – retuitavam tweets de trumpistas que foram essenciais na construção da narrativa, e também usavam imagens e vídeos traduzidos dos EUA para propagar a mensagem. Trata-se das estratégias de “slogans virais” e uso de memes, apontados pelos pesquisadores de Harvard como métodos de manipulação de discurso.

Por exemplo, às 16h00 Miriam Silva (@MIRIAMA73004534), que diz viver na Califórnia, respondeu a um retweet de Renato Barros, famoso influenciador bolsonarista, usando a hashtag e acusando os democratas de “demoníacos”. Renato dava visibilidade a um vídeo mentiroso publicado por Eric Trump, filho do ex-presidente americano, que alegava que 80 urnas haviam sido queimadas. O vídeo foi checado pela CNN, que garantiu que era falso. Miriam abriu a conta em abril de 2019 e parou de tuitar em 13 de julho de 2021.

Cida Viana (@vianadepinho) às 16h34 espalhou que, no Arizona, Joe Biden recebeu 100 mil votos acidentais (a história foi verificada como falsa pelo site Snopes).

A mesmíssima frase, com mesma formatação (caixas-altas nas mesmas palavras), foi espalhada às 4h27 por Direita Raiz (@BolsoTrumpRaiz) usando a hashtag e compartilhando um print do site trumpista Arizona Informer. Foi retuitado 503 vezes e ganhou 2.270 likes.

Reprodução / Twitter

O uso da mesma frase e formatação indica coordenação para viralizar uma mensagem, o que caracteriza “slogan viral”.

Outras contas começaram a relacionar a suposta fraude nos EUA com uma suposta fraude no Brasil. Reproduziam uma teoria já muito propagada pelo presidente Jair Bolsonaro de que teve seus vídeos removidos de diversas redes sociais por conta da acusação sem prova de fraude nas eleições de 2018.

A conta de @Hederso11000770 tuitou 18 vezes o texto: “As eleições Americanas, assim como foi aqui no Brasil, estão sendo VERGONHOSAMENTE FRAUDADAS!!”. A cada vez, respondia a um usuário diferente, para engajar novas pessoas, sempre com a mesma mensagem copiada.

Reprodução / Twitter

Uma delas, às 16h52, respondia ao vídeo de Trump durante a madrugada, no qual ele reivindicava ter vencido as eleições e dizia que estava liderando na Carolina do Norte por 76 mil votos quando “a contagem apenas parou”. A informação foi checada e desmentida pelo site Fact-Check.org. O vídeo foi traduzido para o português pela conta Legendagem, que foi suspensa do Twitter, mas segue funcionando no YouTube. O canal traduz vídeos de ultradireita de Trump para o português e vídeos de Bolsonaro para o inglês e já teve mais de 216 mil visualizações.

Segundo o site Botometer, o usuário tem alta chance de ser um robô ou conta inautêntica.

A mesma conta tem uma ligação com o Partido Aliança pelo Brasil, tentativa fracassada de Bolsonaro de ter seu próprio partido, pois o seu perfil linka para grupos de Facebook do Aliança pelo Brasil São Paulo.

Assim como eles, outros usuários usaram a hashtag para associar as pretensas fraudes nos EUA a possíveis fraudes nas eleições brasileiras.

Outra usuária que relacionou a votação americana com as eleições no Brasil foi Regina Pereira, (@ReginaP53835621). Assim como muitos dos usuários anteriores que se engajaram na hashtag, ela marcou um perfil de maior alcance (a de Jair Bolsonaro), para ampliar o impacto “Exatamente presidente @jairbolsonaro vamos lutar pelo voto impresso!! Agora #GoTrumpReeleito”.

Reprodução / Twitter

No dia 7 de novembro, outro perfil trouxe para o Brasil materiais usados pela campanha trumpista. Carlos Andrade, que se diz “em guerra santa contra o lado esquerdo da força”, usou um meme que dizia “fraude”, em inglês, e um infográfico falso que supostamente mostrava um salto nos votos de Joe Biden, ao lado da hashtag. A estratégia é classificada como “desinfográfico” e usada na manipulação do debate público.

Outra estratégia usada para bombar a tag entre novembro de 2020 e janeiro de 2021 foi associá-la a outras tags. As mais comuns foram “GoTrump2020” e “BidenWasNotElected”, impulsionadas pelos apoiadores de Donald Trump. Porém, também foram usadas tags de apoio a Bolsonaro, como “FechadoComBolsonaroAte2026” e “GoBolsonaroMundial”, além de tags que atacavam as urnas eletrônicas, como “VotoImpressoEm2022”. A tag também foi relacionada com hashtags populares no Brasil, uma estratégia para ampliar sua visibilidade, como “AFazenda2020” e “Afazenda”.

Maior influenciador é candidato a deputado estadual pelo PL

Entre os perfis que ampliaram a hashtag, o maior influenciador foi Jouberth Souza, um conhecido influenciador das redes bolsonaristas e ex-candidato a vereador de Timóteo, em Minas Gerais, pelo PSC. Foi o mais retuitado (2.925 vezes) e o mais mencionado (751 vezes); e recebeu ao todo 3.746 respostas. Ele engajou quase 40 mil perfis na sua campanha, segundo levantamento da Pública.

Com uma trajetória que passou de modesto apoiador do bolsonarismo nas redes, Jouberth virou um nó central nas redes bolsonaristas, com mais de 210 mil seguidores. A Pública identificou que, enquanto impulsionava a tag de apoio a Trump, ele recebia verba do Auxílio Emergencial do governo federal.

Tamanha movimentação não foi por acaso. Uma análise da sua conta revela que ele atuou deliberadamente para engajar mais pessoas na hashtag. Ele tuitou a hashtag 16 vezes e foi o perfil de maior impacto, segundo análise da empresa TweetBinder. Nos seus tweets, a hashtag sempre esteve associada à ideia de fraude nas eleições americanas. A primeira vez, às 17h08 da tarde no dia 4 de novembro, já disparou: “não vai ter golpe” ao lado da bandeira americana, frase que repetiria depois. O tweet teve mais de 4.800 interações.

Jouberth também ajudou a propagar as fake news espalhadas pelo Partido Republicano no Brasil naquele 4 de novembro de 2020. Sua atuação incluiu interagir com os maiores influenciadores do campo do presidente. Às 18h30, Eduardo Bolsonaro tuitou uma mensagem dúbia, jogando suspeitas sobre o pleito americano. Dizia: “A esquerda é bem organizada em nível mundial. Por isso é importante acompanhar as eleições dos EUA. O que acontece lá pode se repetir aqui”. Dois minutos depois, Jouberth respondeu ao tweet aproveitando o amplo público para radicalizar a narrativa: “Tá cheirando fraude”, escreveu. Seu comentário teve quase mil curtidas. Eduardo Bolsonaro era, na época, presidente da Comissão de Relações Exteriores da Câmara dos Deputados e esteve nos Estados Unidos, numa viagem fora da agenda oficial, no dia 6 de janeiro, quando ocorreu a invasão do Capitólio. Em Washington, ele encontrou aliados importantes de Trump, como sua filha Ivanka e seu genro Jared Kushner e o empresário Mike Lindell.

O influenciador esforçou-se por alavancar a tag pelo menos duas vezes, chamando seus seguidores para responderem. No dia 4 de novembro, ele chamou seus seguidores para interagirem com a hashtag perguntando: “Você acredita na reeleição do Presidente Donald Trump? Diz aí!

#GoTrumpReeleito”. O tweet teve mais de 6.300 interações, ampliando o alcance da tag. Ele repetiu a dose no dia 8 de novembro. Jouberth voltou a tuitar com um texto alterado para fomentar a teoria de que Trump foi reeleito, mas as eleições foram roubadas.

Reprodução / Twitter

Também dessa vez o tweet foi bem-sucedido (mais de 6.500 interações).

Em outubro, Jouberth já tentara emplacar outra tag com o mesmíssimo texto, o que demonstra que ele agia para impulsionar no Brasil alguma hashtag de apoio a Trump. No dia 17 de outubro, ele tuitou do seu iPhone: “Você acredita na reeleição do Presidente Donald Trump? Sim/Não. Responda usando a tag: #GoTrump2020”. Teve mais de 5.100 interações.

A tática deu resultado: os tweets de Jouberth19 representam 0,09% do total de publicações e 25% do total de interações analisadas. Além disso, Jouberth fica atrás apenas do perfil de Donald Trump na lista de usuários mais respondidos nos tweets que mencionam a hashtag.

No começo de janeiro, enquanto crescia a campanha que levaria à tentativa de golpe de Estado com a invasão do Capitólio, Jouberth voltou à carga. Logo no primeiro dia de janeiro de 2021, tuitou mais uma pergunta para os seus seguidores:

“Presidente Donald Trump ganhou as eleições de 2020?
SIM SIM SIM”

Recebeu mais de 15 mil interações.

No dia 5 de janeiro, Jouberth ainda lançou outra hashtag, #Dia6VaiSerHistorico. Provocou seus seguidores: “Eu acredito na vitória de Donald Trump. E vc? #Dia6VaiSerHistorico”, tuitou às 2h52 do dia 5 de janeiro. Teve mais de 5.200 interações. A hashtag serviu para começar uma campanha para fomentar a expectativa sobre a marcha que levou à invasão do Capitólio, entre o público brasileiro de ultradireita.

A hashtag teve 286 tweets entre os dias 5 e 6 de janeiro. A mesma hashtag seria reaproveitada nos protestos de 7 de setembro daquele mesmo ano, aqui no Brasil, com a hashtag #Dia7vaiSerHistorico.

Muitos perfis que bombaram a tag inventada por Jouberth seguem o padrão das contas inautênticas detectadas pela análise da Pública em relação à tag #GoTrumpReeleito: poucos seguidores, nomes compostos de números randômicos, e deixaram de tuitar em 2021.

Entre os usuários mais influentes que interagiram com a hashtag #GoTrumpReeleito estão a comentarista da Jovem Pan Zoe Martinez (@zoemartinez_05), jovem cubano-brasileira engajada na política, com mais de 380 mil seguidores, e o pastor René Terra Nova, do Ministério Internacional da Restauração (MIR) – também um bolsonarista que tem articulado a campanha do presidente em Manaus com foco no público evangélico, com 183 mil seguidores no Twitter.

Campanha e robôs

Entre contas hiperpolitizadas e contas de comportamento inautêntico que trabalharam para impulsionar a hashtag, o Bot Sentinel, projeto que monitora movimentos inautênticos no Twitter, avaliou que a hashtag #GoTrumpReleito estava sendo impulsionada por robôs quando chegou ao Trending Topics na manhã do dia 5 de novembro. Ele detectou pelo menos nove tweets de contas inautênticas, e a tag foi uma das dez mais impulsionadas por contas inautênticas no Twitter mundial naquelas horas da manhã.

Um desses robôs que impulsionaram artificialmente a hashtag, de nome “David” (@dfjdjdhdydjdjd), parece ter sido criado apenas para comentar, em português, as eleições americanas. A conta, sem foto de perfil, foi aberta em 3 de novembro de 2020 e tuitou apenas no dia 4 de novembro. Não tem seguidores nem segue ninguém. Mas, durante o tempo em que esteve ativa, tuitou 73 vezes, sempre interagindo com outros usuários como estratégia para ampliar o alcance, e todos usando a hashtag #GoTrumpReeleito, 68% das vezes aliando-a a #FechadoComBolsonaroAte2026.

A primeira mensagem, repetida 19 vezes entre 8h59 e 9h14, reproduzia a alegação de fraude por causa do erro de votos em Michigan: “FRAUDE!!

Em Michigan, está esclarecido os 138 mil votos para Biden, a mais, foi um ‘erro de digitação’. Em vez de 15.371 colocaram 153.710. Com a correção, Trump retoma a liderança. #GoTrumpReeleito”.

Reprodução / Twitter

Três contas que mais tuitaram são inautênticas

A usuária @Marcia06513945 foi a que mais tuitou a hashtag – um total de 208 vezes. A primeira vez foi em 4 de novembro e a última, em 26 de julho de 2021. A conta foi suspensa por violar as regras do Twitter.

Reprodução / Twitter

No dia 4, @Marcia06513945 tuitou pela primeira vez às 17h27. Escreveu “JUNTOS #GoTrumpReeleito”. Ela compartilhava um tweet de Davi Albuquerque, outro conhecido influenciador bolsonarista, que dava vitória a Trump na Pensilvânia. Trump perdeu na contagem oficial.

Durante esse tempo, ela retuitou diversas vezes postagens de formadores de opinião bolsonaristas, como Bernardo Kuster, Dom Esdras, Renato Barros, Alan Lopes, Família Direita Brasil, Daniel Silveira, Davy Albuquerque, do Conexão Política, Fakhouri, Oswaldo Eustáquio, Paulo Figueiredo Fiho, sempre revezando e retuitando os posts originais e acrescentando comentários repetidos como “GLORIA A DEUS”, seguidos por emojis e a hashtag #GoTrumpReeleito.

Apenas no dia 7 de novembro, quando a imprensa americana começou a declarar Biden vitorioso – após a contagem de votos da Pensilvânia –, ela tuitou 70 vezes.

A segunda conta que mais tuitou a hashtag foi BolSoNéo (@NeoSzymanski), que a usou 188 vezes. A conta é apontada como robô pelo Botometer, por conta da baixa dependência dos tweets em linguagem humana, já que a vasta maioria (74%) são retweets. A conta é tão ativa que chega a tuitar 2 mil vezes por semana e, desde 2019, já tuitou quase 130 mil vezes.

O robô bolsonarista tem como descrição “Deus, Pátria, Família e Liberdade” e duas hashtags: #BolsonaroReeleitoEm2022 e #Dia7SetembroEuVou. Tem quase 6 mil seguidores. E só tuíta aos sábados de madrugada.

A terceira conta, de José Humberto (@astavesg), segue o mesmo padrão, com uma foto antiga e mal focada, 1.200 tweets por semana e 90% de retweets. Tuitou a hashtag #GoTrumpReeleito 127 vezes. Ela só tuíta às sextas e aos sábados.

Campanha acompanhou discurso de deputadas e embasou ações do governo (5 e 6/11)

Embora a hashtag não tenha sido tuitada pelos políticos mais conhecidos do campo bolsonarista, ela serviu de “campanha paralela” que espelhava as mensagens enviadas por esses políticos, que também são influenciadores nas redes.

Quase ao mesmo tempo, os principais expoentes desse campo passaram a também espalhar a versão mentirosa de Trump no Brasil, valendo-se dela para questionar a legitimidade das urnas eletrônicas. Assim, às 20h10 do dia 4 de novembro, a deputada federal Bia Kicis, que tem 1,4 milhão de seguidores, retuitou a fake news sobre os 100 mil votos contados erroneamente em Fairfax e comentou: “É, acidentes acontecem todos os dias nas eleições. Que vergonha! Infelizmente, na maior democracia do mundo, a esquerda torna impossível se praticar a democracia”. A postagem teve 5.100 likes. Antes desse tweet, no dia 3 de novembro, ela havia demonstrado esperança. Tuitou imagens suas celebrando a eleição de Trump e mensagens esperançosas como “A Flórida é @realDonaldTrump !”.

Bia Kicis, que engaja seu público com esse tema, é autora de um Projeto de Emenda Constitucional (PEC) que obrigaria a impressão de votos para permitir recontagem. Assim ela reforçou a narrativa no dia seguinte. Porém, a PEC já havia sido rejeitada no Congresso em agosto. “Todo sistema eleitoral é passível de fraude, no papel, digital e até c/ voto impresso. A diferença é que sem voto impresso a fraude não deixa rastro, enquanto nos demais métodos, crime deixa rastro e pode haver recontagem/auditagem. Nosso sistema é como um homicídio sem corpo de delito”. Esse tweet teve 9.800 likes.

As redes rapidamente passaram a pautar a política. No dia 5, aproveitando a reverberação da “grande mentira” de Trump no Brasil, em sua live semanal Bolsonaro falou sobre a PEC de autoria de Bia Kicis, que obrigaria a imprimir todos os votos. Ele disse que iria agir para aprovar a proposta no Congresso, embora a PEC já tivesse sido arquivada. “Então nós devemos, sim, ver o que acontece em outros países e buscar um sistema confiável por ocasião das eleições”, disse.

No dia 6, Bia Kicis retuitou um vídeo compartilhado por figuras-chave da campanha de Trump, como Donald Trump Jr., Rudolph W. Giuliani e o senador Ted Cruz, mostrando um homem que se diz democrata reclamando que em Filadélfia não estavam permitindo a supervisão independente. “Isso é um golpe contra o presidente dos Estados Unidos”, disse. O vídeo foi tuitado pelo usuário @DrSenso com legendas em português, feitas pelo influenciador @DomDasThreads. “Corrupção no mais alto nível”, tuitou. O vídeo em português teve mais de 100 mil visualizações e continua online no Twitter.

A história foi checada por vários jornais e é falsa. O homem em questão, Brian McCaffrey, é apoiador de Trump e foi afastado da supervisão da contagem por estar filmando – o que é, de fato, proibido.

No dia 7, Bia Kicis pediu o não reconhecimento da vitória de Biden por autoridades brasileiras. “Vamos aguardar a justiça decidir se houve ou não fraude nas eleições americanas e quem é o vencedor. Até lá, toda manifestação, inclusive de autoridades brasileiras, é precipitada e desrespeita a Justiça e o povo americano”, tuitou.

Reprodução / Twitter

“É imprudência cantar vitória para qualquer dos lados mas a imprensa já fez seu anúncio não oficial. Esse vídeo mostra um fato escandaloso de voto por uma eleitora falecida. E parece não ser fato isolado”, tuitou. O vídeo teve 67 mil visualizações.

Carla Zambelli (PSL-SP), outra deputada bolsonarista com grande presença nas redes sociais e mais de 1,9 milhão de seguidores no Twitter, demonstrava otimismo até o dia 3 de novembro, quando publicou um post satírico com o rosto de Joe Biden e o texto “danto tilt”. "Falta um dia para a eleição nos EUA… E o Joe Biden continua dando “tilt”."

Ela voltaria a comentar as eleições americanas apenas no dia 5, já falando em “fraude”. “Censurar denúncias sobre uma fraude eleitoral somente interessa aos participantes da fraude”, escreveu às 16h45 do dia 5 de novembro. O comentário era uma resposta a redes sociais que passaram a retirar do ar postagens de Donald Trump espalhando a narrativa de fraude. O tweet teve mais de 10 mil curtidas.

Com o passar dos dias, Zambelli também embarcou na campanha para espalhar a versão de Trump, assim como na tentativa de relacionar com possível fraude nas urnas aqui no Brasil.

Assim, no dia 6, às 16h26, ela traduziu e publicou um vídeo da Fox News, de Laura Ingraham: “Saiba o que está acontecendo nos EUA – e por que Trump está judicializando a apuração. Laura

@IngrahamAngle mostra o que a mídia brasileira vai tentar esconder de você”. O vídeo teve 193 mil visualizações.

No dia 8, a equipe de Zambelli traduziu um discurso de Rudy Giuliani afirmando: “já que boa parte da mídia brasileira insiste em ESCONDER informações do público, nós mostraremos o outro lado. O advogado @RudyGiuliani aponta novos indícios de fraude e explica as próximas ações a serem tomadas”. No vídeo, Giuliani dizia que os votos pelo correio eram inconstitucionais e acusava Joe Biden de ter recebido US$ 14 milhões em propinas. O vídeo teve 249 mil visualizações entre os brasileiros.

Embora não tenha sido usada pelas deputadas, a hashtag foi amplamente utilizada pelos seus seguidores, em especial para dar retweets e respostas a postagens que alimentavam a narrativa de fraude. Pelo menos 174 tweets com a hashtag mencionaram Carla Zambelli e pelo menos 189 mencionaram Bia Kicis.

Essas campanhas de desinformação digital não foram inconsequentes.

Bolsonaro foi o penúltimo chefe de Estado a reconhecer a vitória de Biden, poucas horas depois de Vladimir Putin e antes de Kim Jong-il. Antes disso, Bolsonaro havia dito à imprensa que preferia esperar porque tinha “fontes próprias” que garantiam que “realmente havia muita fraude ali”.

Prova de que a articulação nas redes sociais espelhava decisões políticas do governo – uma alimentando as outras. Assim como em outros momentos do governo Bolsonaro, as redes ajudaram a criar a percepção de que havia uma pressão da opinião pública para que o presidente resistisse a referendar o novo presidente americano.

Campanha #GoTrumpReeleito seguiu até invasão do Capitólio

Depois de Joe Biden ter sido declarado vencedor da eleição pela imprensa americana, em 7 de novembro aliados de Trump passaram a organizar a campanha “Stop the Steal” (Pare com o Roubo), enquanto uma equipe de advogados leais a ele começou uma batalha judicial para reverter sua derrota, com base em alegações infundadas de fraude – a Justiça americana descartou de cara a maioria dos processos.

Ao mesmo tempo, uma campanha narrativa foi levada a cabo por Trump e seus apoiadores nas redes sociais.

Aqui no Brasil, a hashtag #GoTrumpReeleito perdeu força, mas não deixou de ser usada até fevereiro de 2021. Os principais picos ocorreram em datas em que a campanha “Stop the Steal” estava agitando as redes sociais e a mídia de ultradireita nos Estados Unidos.

O dia 14 de novembro, por exemplo, foi um dia importante, quando a hashtag atingiu um novo pico. Isso porque houve um grande protesto organizado pela campanha “Stop The Steal” em Washington. Imagens e vídeos do evento passaram a pautar as redes bolsonaristas aqui no Brasil. Entre os 233 tweets analisados pela reportagem naquele dia, apenas 11 (4,7%) não foram nem resposta ou retweets de conteúdos produzidos por influenciadores.

Era o começo da campanha que culminaria com a invasão ao Capitólio em 6 de janeiro – e com repercussões também na esfera bolsonarista aqui no Brasil. Foram 595 tweets apenas no dia 6, segundo o Tweet Binder.

No dia 4, já havia muita gente usando a tag. Por exemplo, o usuário Marcus escreveu que “dia 6 de janeiro vai ser lindo. #GoTrumpReeleito” – e publicou uma imagem de Joe Biden carregando votos roubados em uma sacola dos correios. Marcus, um influenciador que tem mais de 70 mil seguidores, teve sua mensagem retuitada 27 vezes e recebeu 107 likes.

Foi no dia 5 de janeiro que surgiu o tweet mais popular de todo o período. Alexandre Ziben, do site Politica BR, escreveu: “Você pode fraudar as urnas, mas não pode esconder os eleitores. #GoTrumpReeleito”. Enviado às 21h36, o tweet mostrava uma foto de uma multidão em um evento de campanha de Trump na Geórgia, em 5 de dezembro do ano anterior. Não tinha, portanto, nenhuma relação com a manifestação que já estava prometida para 6 de janeiro – tratava-se de uma “mídia recontextualizada”, uma das estratégias de desinformação mais comuns segundo o Media Manipulation Casebook.

Reprodução / Twitter

O tweet teve mais de 10 mil engajamentos no total. A mesma foto fora usada uma hora antes pelo próprio Donald Trump no Facebook e no Twitter, quando ele instava os seus apoiadores a sair para votar nos senadores republicanos na Geórgia, naquele mesmo dia.

A tag foi impulsionada, no dia 6 de janeiro de 2020, por diversas contas inautênticas: por exemplo, Nunes Elidiane (@NunesElidiane), que parou de tuitar em 2021. Sarah Ferreira (@SarahAF28) tuitou em resposta ao republicano Dan Scalvino. Foi um dos 12 tweets que ela fez na vida. Izilda (@Izilda012016), com apenas dois seguidores, parou de tuitar em julho de 2021. Aldemir Moura (@Aldemirmoura4) deixou de tuitar em novembro de 2021.

Algumas contas foram usadas para apoiar a invasão. A conta @WEVERSONPQDT96 foi suspensa. Mas o tweet dele às 18h36 chegou a ter 64 likes e 16 retweets. Ele tuitou: “Estados Unidos dando show de patriotismo, Trump é um verdadeiro líder, a guerra apenas começou #GoTrumpReeleito https://t.co/ieVRudnOHT”.

A mobilização online foi insuflada por ações de influenciadores bolsonaristas que vivem nos EUA e acompanharam a movimentação de 6 de janeiro e os protestos da campanha “Stop The Steal”, como Allan dos Santos, do Terça Livre. Embora muitos desses vídeos tenham sido apagados por contrariar as regras do Twitter, reportagem da Pública da época listou a atuação das principais vozes do bolsonarismo a favor da invasão do Capitólio.

Aqui no Brasil, Jair Bolsonaro continua espalhando a mesma versão. Antes de se encontrar com Joe Biden, em 9 de junho deste ano, seguia propagando a mentira sobre fraude nas eleições de 2020. “O Trump estava [indo] muito bem [na contagem]. E muita coisa chegou para gente que a gente fica com pé atrás”, disse Bolsonaro. “A gente não quer que aconteça isso no Brasil. Tem informações de próprios brasileiros que teve gente que votou mais de uma vez.”

É essa a visão de Izaura Silva, que ao telefone responde sem hesitar: “Não tenho dúvida que as eleições dos EUA foram fraudadas”. Ela diz que tem muitos amigos que vivem nos Estados Unidos e recebeu diversas imagens que provavam fraude – como por exemplo “imagens de   cédulas jogadas no lixo” – a história foi checada pela CNN e não há indício de fraude. Confiante nas suas redes de informação, Izaura  diz também ter absoluta certeza de que Bolsonaro só perde as eleições deste ano se houver fraude. “Se você olhar a ‘datapovo’, não tem como o Bolsonaro não ganhar. O Bolsonaro não ganha só se houver fraude. Eu, no fundo, não confio nas urnas. Não confio quem tá por trás das urnas”, diz ela, antes de dar o nome dos ministros do STF que mais recebem ataques nas redes bolsonaristas. “Eu acho que essa resistência de ter o voto impresso é um mal sinal.”

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