É muito fácil comprar e vender receitas médicas ilegais nas redes sociais

Perfis no Instagram, no Telegram e no WhatsApp comercializam aos montes autorizações para remédios controlados, como clonazepam, zolpidem, Ritalina e xarope de codeína.
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No mar infinito de golpes e furadas no qual a internet plataformizada se transformou nos últimos anos, a venda ilegal de receitas médicas prosperou de forma nada silenciosa para quem estiver a fim de comprar.

Inicialmente, a divulgação da venda de receitas médicas começou a pipocar no X (antigo Twitter) na forma de bots automatizados para responder qualquer tuíte que citasse algumas palavras-chave. 

Atualmente, perfis que divulgam a venda de receitas médicas estão menos automatizados e se espalharam para Instagram, WhatsApp e Telegram.

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Nas dezenas perfis encontrados pelo Núcleo, os remédios mais anunciados são os benzodiazepínicos, como o alprazolam e clonazepam, assim como outros tipos, a exemplo do zolpidem e as chamadas “smart drugs” como a Ritalina e Venvanse, além de opiáceos, como o xarope de codeína.

Os valores da receita variam de R$ 5,00 a R$ 40,00. Em grande parte dos perfis, pelo tipo de papo e descuido com informações pessoais, tanto vendedores quanto compradores parecem ser jovens em busca de dinheiro fácil e de usar os medicamentos de forma recreativa para chapar.

As tais receitas falsas na verdade são arquivos em PDF de notificações de receita médica, um documento impresso em gráfica como se fosse um talão de cheques, cuja emissão depende da vigilância sanitária municipal. 


É importante porque...

Antes mais restrito ao X/Twitter, venda de receitas se espalhou para outras plataformas

Falta de fiscalização torna a falsificação de receitas extremamente fácil de se conseguir e usar

Uso de remédios controlados sem prescrição médica pode trazer inúmeros riscos e inclusive levar à morte


Por mais que pareça um "golpe" sem qualquer sofisticação, a dificuldade de fiscalização pelos órgãos responsáveis criou as condições ideais para que perfis nas redes sociais anunciem a venda de arquivos PDF contendo as notificações com o nome e carimbo de médicos reais. Basta apenas imprimir e preencher à mão o medicamento desejado. 

Exemplo de notificação de receita comercializada ilegalmente nos grupos de compra e venda. Nome e CRM do médico foram ocultados por nós

O resultado? Uma mesma notificação de receita, por mais falsa que seja, pode ser usada dezenas de vezes em diferentes farmácias do Brasil.

No precinho

“Ela pode ser utilizada em todo o Brasil, independente de onde seja o carimbo. Por exemplo, o carimbo é de São Paulo e eu uso direto aqui em Pernambuco”, disse uma mulher, que se identifica como compradora assídua de zolpidem, em uma mensagem de áudio enviada em um grupo no Telegram no dia 1º de abril de 2024. 

O grupo tem atualmente 136 membros. Ele é um de vários que funcionam no Telegram onde são anunciadas a venda de receitas falsas e de medicamentos controlados.  

Já no Instagram, perfis divulgam promoções na compra de mais de um tipo de receita falsa e publicam fotos e vídeos de pessoas ostentando caixas e mais caixas de de medicamento. Em um deles, o criador da conta deixa o rosto à mostra enquanto prepara lean, uma bebida feita com o xarope.

Este mesmo usuário vendendo as receitas publicou stories ostentando caixas de alprazolam e clonazepam dias depois em que um jovem de 19 anos fez uma compra grande e usou os medicamentos para tentar se suicidar.

Mesmo após a tentativa de suicídio ter sido facilitada pela venda ilegal de medicamentos controlados, o criador do perfil continua publicando promoções e vídeos ostentando cartelas de alprazolam e frascos de xarope de codeína. 

O que é o "golpe"?

As notificações de receita médica foram criadas pela Anvisa para dispensa de alguns tipos de medicamentos controlados. Ou seja, não basta apenas uma receita médica, ela precisa estar acompanhada de uma notificação de receita impressa, preenchida manualmente e assinada pelo médico ou profissional de saúde.

Quando feita de forma legal, a notificação é preenchida e carimbada pelo médico com o remédio prescrito e a dosagem recomendada e é entregue em duas vias físicas para o paciente, que só pode comprar a medicação caso a notificação esteja acompanhada da receita médica do mesmo médico. 

Na hora da compra, uma via física é retida pelo farmacêutico e a outra fica com o paciente.

Segundo a Portaria/SVS Nº 344/1998 da Anvisa, as notificações são divididas em três categorias de medicamentos: azul (psicotrópicos), amarela (entorpecentes) e branca (retinoides de uso sistêmico e imunossupressores). 

Tendo acesso às notificações, é possível adquirir medicamentos cujo uso indiscriminado pode ser perigoso e altamente viciante. Com a notificação amarela, por exemplo, Fentanyl, Cetamina e outros tipos de medicações podem ser adquiridos.

Cada notificação de receita tem um número único, permitindo que o médico e a vigilância sanitária saiba exatamente para quem ela foi prescrita e onde foi usada. Se trata de um documento altamente sensível e, caso seja extraviado ou furtado, o médico precisa fazer um boletim de ocorrência e avisar a vigilância local para que ele não seja utilizado.

Ao contrário das receitas médicas, que podem ser emitidas digitalmente com um certificado digital atestando sua veracidade, as notificações são 100% analógicas. E não é permitido nenhum tipo de emissão digital desse receituário.

Ou seja, todos os dias milhares de notificações de receitas são emitidas à mão por médicos e alguns profissionais de saúde e o controle de tudo isso é feito manualmente.

Foi assim que esse mercado ilegal nas redes sociais entendeu uma brecha sanitária para operar sem grandes impedimentos. Como o controle é descentralizado e realizado pelas autoridades sanitárias municipais e estaduais, e é inteiramente analógico, a mesma receita é vendida dezenas de vezes e muitas vezes passa batido pelos olhos do farmacêutico.

“Hoje existem falsificações impossíveis de reconhecer”, explica Adriano Falvo, presidente e secretário-geral do Conselho Regional de Farmacêutica. “O controle das farmácias é possível se elas tiverem um software de uso interno, mas isso não é aplicável a todas. Grande parte das farmácias são independentes, não fazem parte de uma rede”.

A falsificação de receita médica é crime previsto no art. 298 do Código Penal com pena de um a cinco anos e multa. O "golpe" que pouca gente sabe antes de adquirir o PDF é que o risco todo fica a cargo de quem vai tentar usar a notificação falsa na farmácia.

Caso o farmacêutico não perceba que se trata de uma falsificação, sucesso. Caso contrário, quem arcará com todas as consequências, inclusive criminais, será quem comprou a notificação falsa através de um desses perfis. 

“As notificações de receitas são uma bomba relógio”, alerta Falvo. “Atualmente, as informações de cada notificação não podem ser cruzadas pela Anvisa, não há um padrão de assinatura digital e torna quase impossível identificar uma receita falsa”

‘Pra ficar estético’

Embora alguns perfis ofereçam outras opções medicamentos, grande parte do público procura por remédios psicotrópicos que só podem ser comprados com um receituário específico – a chamada “receita azul”.

No universo das receitas falsas, o consumo de benzodiazepínicos e o xarope de codeína está ligado a jovens conectados com estilos musicais específicos como o trap.

Além dos benzodiazepínicos, o medicamento mais procurado é o xarope de fosfato de codeína, o Codein, em um frasco de 120ml. Na farmácia, comprado legalmente, o Codein custa entre R$ 15,00 a R$ 20,00 reais. No mercado paralelo, pode chegar até R$ 75,00. Esse é o item essencial para a confecção do lean.

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O lean, também chamado de sizzurp ou purple drink (bebida roxa), é uma bebida que pode misturar: xarope de codeína, que é um analgésico opioide, prometazina, um antialérgico, refrigerantes, energéticos e balas de goma. A mistura é viciante e altamente tóxica por conter substâncias depressoras do sistema nervoso central. Pode levar, entre outros efeitos colaterais, a parada respiratória e morte por overdose.

O lean ficou popular graças à sua influência na criação do “chopped and screwed”, um subgênero do hip-hoip criado em Houston, Texas nos anos 1990.

O gênero, criado por DJ Screw, ficou conhecido por causa das produções de faixas ultra desaceleradas e letárgicas, características semelhantes aos efeitos da ingestão de altas doses de codeína.

A partir dos anos 2000, após a morte de DJ Screw por overdose de codeína, a mistura foi mencionada inúmeras vezes por diversos artistas dos Estados Unidos. Hoje, o consumo de lean não se concentra apenas entre artistas e fãs de hip-hop e já é usado por um público mais eclético.

Nos grupos de venda de receitas falsas, usuários perguntam valores das medicações e os efeitos delas no primeiro uso. Alguns comentam que querem comprar codeína para gravar vídeos de trap. “Ia pegar pra ficar estético e experimentar”, escreveu um membro do grupo.

"Essa demografia em específico que estamos falando se baseia muito no que é moda dos Estados Unidos", diz Uno Vulpo, 28, médico especializado em redução de danos. "São mais jovens heterossexuais que não se reconhecem muito na cultura brasileira e têm uma abordagem mais americanizada nessas drogas".

O consumo recreativo de ansiolíticos e codeína pode se restringir a uma subcultura específica, mas os efeitos sedativos são uma busca comum de muitos jovens brasileiros de diferentes subculturas. 

“É preciso pensar o porquê que esse escapismo é tão procurado pelos jovens atualmente. Estamos falando de jovens com problemas de ansiedade que querem fugir da realidade. É por isso que drogas como cocaína são mais rejeitadas pelos jovens. A cocaína faz o mundo ficar ultrarrealista.

Uno Vulpo, 28, médico especializado em redução de danos

Médicos entraram na furada

A reportagem identificou dez médicos, a maioria de São Paulo, cujo nome e CRM foram usados para preencher as notificações falsas. 

Grande parte relata que ficou sabendo das falsificações por intermédio dos farmacêuticos que ligaram para conferir a procedência das notificações. Em resposta, registraram boletins de ocorrência e notificaram o Cremesp (Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo).

O nome mais repetido nas notificações adulteradas é da médica de Maria Cristina Ramos, clínica geral que atende em um consultório na Zona Norte de São Paulo.

A médica descobriu que o seu nome estava sendo usado na venda de receitas falsas em 2021, quando recebeu uma ligação de uma farmácia em Ilhabela (SP), que impediu a venda de ansiolíticos a um jovem menor de idade. Ela registrou um boletim de ocorrência pela internet.

“Depois disso, recebi várias ligações toda semana de outras farmácias conferindo se eu havia receitado. Todas eram falsas. Até o número do talonário não confere”, conta Ramos. 

Ramos já acumulou em uma pasta mais de 50 cópias de notificações de receitas falsificadas com o seu carimbo. Todas foram notificadas pelas farmácias, grande parte do Paraná, Rio Grande do Sul e no estado de São Paulo. 

Procurado, o Cremesp (Conselho Regional de Medicina de São Paulo) não respondeu os pedidos de entrevista até a publicação desta reportagem.

Dificuldade de fiscalização

Até o momento, as notificações de receitas falsas são anunciadas nas redes sociais como, inclusive, uma forma de conseguir dinheiro “fácil”. 

Afinal, basta apenas comprar uma vez o arquivo em branco e vendê-la quantas vezes quiser. E plataformas, como o Instagram e o Twitter, se tornaram o marketplace perfeito para esse mercado mambembe rolar.

Procurada, a Anvisa diz que há discussões em curso para modernizar o controle das notificações de receitas médicas. 

Em nota, o órgão afirmou estar em processo de negociação de um Acordo de Cooperação celebrado com o Instituto Nacional de Tecnologia da Informação (ITI) para o desenvolvimento e o provimento de tecnologias de segurança digital aplicadas à assinatura eletrônica em receituários de medicamentos controlados, o que inclui, dentre do plano de trabalho, o provimento de solução para a informatização das Notificações de Receita. 

Apesar da dificuldade de fiscalizar a grande quantidade de receituários emitidos todos os dias no Brasil, o órgão publica alertas no site institucional de ocorrências relacionadas às Notificações de Receita.

“As regras vigentes prevêem o atendimento de requisitos para emissão das Notificações de Receita que inviabilizam a emissão eletrônica, pois, a informatização deste tipo de receituário requer uma abordagem ampla e complexa, sendo que, uma eventual prescrição eletrônica sem a manutenção dos controles necessários resultaria em grave prejuízo da rastreabilidade e não contribuiria para mitigação do uso indevido dos medicamentos controlados sujeitos a esse tipo de prescrição”, disse a Anvisa.

⚠️ Texto atualizado às 21h09 de 29.mai.2024 para corrigir uma informação: uma versão anterior do texto, no primeiro box explicativo, identificou o zolpidem como um benzodiazepínico, mas não é. A informação foi corrigida.

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