Raio-X é uma editoria de análise crítica

A revolução das máquinas de conteúdo

Estamos prestes a nos afogar em conteúdo criado por inteligências artificiais. Sobrará espaço para os seres humanos?
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Raio-x é uma editoria de análise crítica do Núcleo e contém opiniões

Há uma revolução acontecendo na internet e você não percebeu. Tudo bem, a intenção é essa. Inteligências artificiais (IAs) capazes de produzir texto legível e coerente, imagens incríveis e até vídeos estão entre nós e já criam muito do conteúdo que aparece nas nossas andanças pela web e em redes sociais.

Estamos vivendo a revolução das máquinas — de conteúdo.

Sistemas como o GPT-3, da OpenAI, criam textos longos a partir de comandos ou frases curtas. Há poucos dias, a Meta lançou uma versão fluente em escrita acadêmica, o Galactica, para o horror de especialistas, preocupados com a instrumentalização dessa nova ferramenta para dar um tom de legitimidade a teorias furadas.

Nos últimos anos, startups foram fundadas baseadas na promessa de textos convincentes com o apertar de um botão. Elas já são usadas no dia a dia de muitas outras empresas, como revelou Christopher Mims em sua coluna no Wall Street Journal.

“É provavelmente impossível que a maioria das pessoas que usam a web diariamente não tenha em algum momento topado com conteúdo gerado por IA”, disse Adam Chronister, dono de um estúdio de otimização para buscadores (SEO).

Essas startups — SEO.ai, TextCortex AI, Neuroflash, entre outras — se ocupam de uma “dor” de pequenas e médias empresas que, com orçamentos apertados para marketing, até agora recorriam a redatores humanos para produzir textos superficiais como parte das suas estratégias de captação de clientes.

São textos criados a partir de pesquisas a outros textos disponíveis na web, reempacotados com técnicas de SEO, cujo objetivo é ficar bem posicionado em pesquisas no Google e em outros buscadores para, ao final, vender um produto ou serviço. De preferência, pagando o mínimo possível. Em resumo, a indústria da produção de conteúdo.

A pesquisadora Kate Eichhorn, do MIT, é fascinada por conteúdo enquanto objeto de pesquisa. Tanto que escreveu um livro, intitulado Conteúdo (sem versão em português), para resgatar as origens, classificar e, ao fim, tentar definir esse termo tão elástico e que, nos últimos anos, passou a figurar em nosso dia a dia, virou até profissão, o famigerado “criador de conteúdo”.

Sua visão de conteúdo não é das mais animadoras:

“A ascensão da indústria de conteúdo é a expressão definitiva do neoliberalismo. Sob a lógica do neoliberalismo, tudo — política, desejos, social, artes, cultura etc. — é reduzido a meros nós na economia de mercado. Reduzir todas as formas de produção cultural a conteúdo não apenas convenientemente apaga a especificidade de diferentes tipos de produção cultural, mas também garante com eficiência que todos os tipos de produção cultural possam ser facilmente substituídos, trocados uns pelos outros. Afinal, todo o conteúdo é parte de um fluxo único e indistinguível.”

É um livrinho bem interessante, esse da Kate. Na conclusão, quando aborda a automação, Kate reconhece que “o conteúdo e a indústria de conteúdo estão aqui para ficar; de fato, muitos dos danos já foram infligidos”.

A autora fala em “resistência” como remédio à enxurrada de conteúdo vazio, em valorizar o que é feito por gente como a gente, com qualquer intenção que não seja vender e/ou circular (o que dá na mesma na lógica do conteúdo). Nada que vá refrear ou acabar com a produção em escala industrial, mas uma resistência saudável, ainda possível.

Com um discurso mais otimista, Arvind Narayanan, professor de ciência da computação na Universidade de Princeton, faz um paralelo entre as IAs escritoras e a calculadora no ambiente da sala de aula.

A partir do momento em que textos gerados por computador se tornam convincentes, baratos e difundidos, a nossa relação com esse suporte/meio muda de natureza. Como explorar essa guinada em benefício nosso, das pessoas de carne e osso?

Estudantes já sacaram que as IAs escrevem bem e começaram a usá-las para fazer lições escolares, em especial aquelas modorrentas e sem sentido, “escreva cinco parágrafos dos benefícios da biotecnologia” (exemplo dele), que não ensinam nada sobre a criação de textos, nem sobre biotecnologia.

Como os textos gerados são, de alguma forma, únicos, não é uma trapaça tão fácil de detectar quanto a famigerada cola da Wikipédia. Mesmo que todos os estudantes de uma turma usem a mesma IA, cada um terá um texto diferente, único, para apresentar ao professor.

Para Arvind, a mudança que se impõe é similar à da introdução da calculadora — a princípio desprezada na sala de aula, depois incorporada; hoje, imprescindível. Resistir é inútil, teremos que nos adaptar. Isso pode até se provar algo positivo:

“Em alguns casos, o objetivo de pedir redações é ensinar técnicas de escrita e pensamento crítico. A disponibilidade de modelos de linguagem não descarta essas habilidades. […] Há inúmeras maneiras de se aproveitar das limitações inerentes dos modelos de linguagem [para exercitar a escrita] que provavelmente não serão superadas tão cedo.”

Não nos enganemos, porém. Na pressão do dia a dia, as IAs geradoras de conteúdo serão usadas a torto e a direito para produzir o que for possível. A preguiça, esse sentimento tão humano, quase sempre vence, e os incentivos da indústria serão cada vez mais tentadores.

Nas últimas semanas, aplicações de uso geral lançaram seus sistemas de IA, como o Canva e o Notion. O Google já ajuda o usuário a escrever e-mails, o LinkedIn sugere mensagens pré-definidas e contextuais em conversas e comentários.

Kate diz explicitamente que resistir não é um ato “neoludista”, mas… talvez seja? É fácil vislumbrar um futuro próximo em que pessoas que escrevem seus textos “de cabeça”, sem o auxílio de uma inteligência artificial, sejam vistas como excêntricas, artesãos da palavra.

Haverá menos espaço, é verdade, porque não dá para competir com as máquinas em volume de produção, e no fundo conteúdo é isso. Voltando à Kate:

“Em essência, [a indústria de conteúdo] é uma indústria que gera receita a partir da produção e/ou circulação de conteúdo por si mesma. O conteúdo em questão às vezes contém informação, conta uma história ou entretém, mas ele não precisa fazer nada dessas coisas para circular com efetividade enquanto conteúdo.”

Ao pensar em conteúdo, sempre me lembro desta divertida coluna do Ricardo Araújo Pereira em que ele faz uma crítica mordaz à internet — o tipo de coisa que uma máquina provavelmente não conseguiria fazer; ou talvez sim, depois de devorar as colunas do Ricardo:

Por exemplo, sempre que alguém que escreve, canta ou representa diz que produz conteúdos para a internet, fico um pouco arrepiado.

Nunca, em toda a história do mundo, um vinicultor disse que produzia conteúdos para garrafas, porque o vinicultor respeita demasiado o vinho para dizer uma coisa dessas. Até porque não está particularmente deslumbrado com a existência de garrafas. Sim, garrafas são úteis, mas o que interessa é o vinho.

No entanto, há artistas que têm tal admiração pela internet que se satisfazem em dizer que produzem conteúdos para lá.

Seguimos firmes na produção de vinho, digo, palavras.

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