Cientistas negros se organizam para aumentar influência nas redes sociais

Tags como #ciêncianegra e #cientistasnegras vêm sendo mais usadas para apontar e debater o racismo no meio científico
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Cientistas negros têm se articulado para conquistar mais influência nas redes sociais, em um momento no qual a divulgação científica como um todo tem crescido em notoriedade e escala, de acordo com apuração do Núcleo junto a grupos e profissionais que promovem antirracismo na ciência.

Já há indicativos de um aumento no número de publicações com termos relacionadas à promoção de cientistas negros, principalmente no Facebook e no Instagram: entre 2017 e 2019 foram encontrados somente 22 posts com tags antirracismo nessa duas redes, mas desde 2020 até agora já são 192.

No Science Pulse, plataforma do Núcleo que monitora perfis de cientistas no Twitter, somente 7 publicações mencionaram ao menos uma das hashtags buscadas: #cientistasnegras, #cienciapreta, #ciencianegra, #negrosnaciencia, #cienciatapreta e #cientistasnegros.

O volume não é tão grande ainda, mas, à medida que mais profissionais entram nas redes e se aventuram na divulgação de ciência, essas campanhas podem ganhar força.


É IMPORTANTE PORQUE…
  • Através delas o movimento de cientistas negros no Brasil começa a sair da invisibilidade das redes, aumentando a representatividade e servindo de exemplo para jovens cientistas pretos e pretas.
  • O baixo número de cientistas negros no país é mais um reflexo da estrutura racista brasileira. E quem perde com isso é a produção científica, que se enriquecerá com a maior inclusão de raças e gêneros.

POUCAS TAGS EM PORTUGUÊS

Apesar de promissores, esses dados ainda são tímidos. Mas por que essas tags ainda são pouco usadas? Cientistas negros não usam rede social? Cientistas negros não necessariamente querem se identificar pela cor da pele? Existem poucos cientistas negros no Brasil?

Para o virologista Anderson Brito, que tem passagens pelo Imperial College London (Inglaterra) e pela Universidade de Yale (EUA), há pouco conteúdo antirracista sobre ciência em português por diversas razões, algumas mais óbvias do que outras.

Faltam, sim, cientistas negros no Brasil. O movimento está aos poucos se fortalecendo e nem todos sentem a necessidade de ser identificados pela cor da pele.

“Acrescentaria que, para além de tags com engajamento político, conheço poucas hashtag de ciência e em português (de qualquer área ou objetivo) que tenha se estabelecido bem no Brasil, como #SciTwitter, #AcademicChatter”, disse Brito, um dos convidados do evento online Cientistas negros, organizado pelo Núcleo em parceria com a Liga de Ciência Preta Brasileira, o Instituto Serrapilheira e o Fórum de Reportagem sobre a Crise Global de Saúde, no dia 30 de julho.

A opinião do virologista foi endossada por Katemari Rosa, mulher negra, LGBTQIA+ e professora de física da Universidade Federal da Bahia e membro da Diretoria da Sociedade Brasileira de Física.

“Acho que tem poucos posts com essas tags porque a compreensão do uso e potencial de hashtags como ferramenta de articulação e ativismo online é baixa [aqui no país]. A gente vê a força do #blacktwitter, nos EUA, por exemplo, mas isso não acontece no Brasil.”

Essa, porém, é só a ponta do iceberg – o buraco é fundo e vai além do aspecto da autoidentidade do cientista negro.

“As tecnologias são discriminatórias porque foram construídas dentro de um contexto social racista, machista e sexista. Elas não são neutras, pois o algoritmo reproduz essas falhas do comportamento social. Para nós, a falta de diversidade é um dos principais motivos  para o baixo engajamento. A maioria dos funcionários deste setor são homens brancos, héteros e de classes sociais média e alta”, comentou o biólogo Cléslei Chagas, co-fundador do grupo Ciência Tá Preta, administrado por ele junto com Bruno França e Elane Corrêa.

O grupo não deixou de mencionar casos recentes em que o racismo estrutural ficou evidente nas redes sociais, como aconteceu há pouco com o Twitter, que, segundo uma pesquisa, prioriza rostos brancos, e o Facebook, que associou imagens de negros a macacos.

ARTICULAÇÃO NAS REDES

A maior articulação nas redes da comunidade negra em geral coincide com a combinação de dois eventos trágicos de 2020: a pandemia do coronavírus e o assassinato de George Floyd por um policial nos EUA.

Por um lado a morte de Floyd devolveu forças ao movimento Black Lives Matter, criado em 2013, e puxou o movimento antirracista tanto nas redes quanto nas ruas. E, por outro lado, a pandemia deu visibilidade a cientistas em geral, que se sentiram no dever de usar suas redes sociais para esclarecer as particularidades do vírus e da covid-19 à população.

“Muitos amigos e familiares estavam perdidos e ansiosos com relação à pandemia, eu tinha algo para contribuir e, então, comecei a usar as redes sociais e meu site pessoal para fazer divulgação científica”, disse o virologista Anderson Brito.

A mesma motivação foi o que levou Felipe Brito, Luciana Silva e Viviane Alves a criarem a Liga de Ciência Preta Brasileira (LCPB), em março de 2020.

A ideia do trio era informar o povo preto sobre a covid, já que a doença provocada pelo coronavírus mata mais pessoas negras e pobres.

“Criamos esse espaço de conversa com lives no Instagram, para tentar ser menos academicista, mais informal e acessível”, justificou a bióloga Luciana Silva, doutora em biologia celular.

“ACHO QUE CIENTISTA DEVERIA USAR ATÉ TIKTOK, PORQUE ESSA É A LINGUAGEM DOS JOVENS” - LUCIANA SILVA, DOUTORA EM BIOLOGIA.

Segundo o pessoal do Ciência Tá Preta, o objetivo dessa articulação para divulgar trabalhos científicos de profissionais negros e negras é construir um quilombo digital.

“Acreditamos muito na ideia do ‘nós por nós’ e do ‘eu sou porque nós somos’ – expressões originárias da filosofia Ubuntu. Diante disso, o fortalecimento de nossos pares é primordial para seguirmos adiante dentro de um espaço acadêmico e científico que nos foi negado historicamente”, explicou o grupo em entrevista por email.

De fato, também há uma tendência à organização dos cientistas negros em pequenos grupos via WhatsApp, acrescentou a professora Katemari Rosa, que não enxerga como opção válida uma organização unida e homogênea desses profissionais.

“Pessoas negras não são homogêneas e não sei nem se precisa tirar a invisibilidade de cientistas negros. Basta tirar a centralidade das pessoas brancas, a supremacia branca dos espaços, que domina tudo e todos a qualquer custo. Penso que é extremamente importante o papel da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros, que tem crescido fortemente, o que é um bom sinal.”

QUE CARA TEM UM CIENTISTA?

À medida que as dúvidas sobre o coronavírus foram sendo esclarecidas, a LCPB passou a abordar em suas lives outras questões além da covid-19, como acesso à universidade, pedagogia e a relação dos negros com o cabelo.

Com isso, Luciana Silva, que é quem mais comanda as lives, espera trazer à tona temas relevantes para aumentar a autoestima dos negros e fomentar o movimento de divulgação do trabalho do cientista negro.

TUDO PRA TENTAR INSPIRAR JOVENS PRETOS E PRETAS A OCUPAREM ESPAÇOS ACADÊMICOS AO SE VEREM REPRESENTADOS POR CIENTISTAS.

Afinal, qual é a cara de um cientista? Em mecanismos de busca por imagens de cientistas, o algoritmo o enxerga primordialmente como branco. E não só o algoritmo, pelo jeito.

“Em uma roda de pessoas que não me conhecem, sempre gera surpresa se eu falo que sou cientista porque, historicamente, no país, os negros só têm cara de serviçal. As pessoas não te enxergam em outros lugares”, lamentou a bióloga Luciana Silva, que já foi questionada se era a babá enquanto estava junto a uma criança branca, confundida por faxineira quando abriu a porta de casa para um desconhecido e atribuída o selo de artista quando sai bem vestida.

“Não é que eu não possa ser uma babá ou uma doméstica, porque no Brasil existe essa mentalidade de que esses profissionais são menos merecedores de crédito. O problema é que a gente só é reduzido a esse grupo de trabalhador”, desabafou.

A fala de Luciana deixa claro: nas redes, a falta de tags em português que chamam a atenção para o domínio branco na ciência envolve questões bem mais profundas, como o racismo estrutural que permeia a academia brasileira, impedindo a normalização da negritude no meio científico e o aumento da diversidade na ciência – que só se beneficiaria dessa inclusão.

A ciência tem um problema de racismo (Science Has a Racism Problem), admitiu a equipe da revista científica Cell em seu editorial de junho de 2020, ao falar sobre o privilégio branco e a segregação racial no meio acadêmico.

Em 2021 e para a surpresa de zero pessoas, os reitores de algumas das principais e melhores universidades do Brasil


Universidade de São Paulo: Vahan Agopyan

Universidade de Campinas: Antonio José de Almeida Meirelles

Universidade Federal de MG: Sandra Regina Goulart Almeida

PUC-Rio: Pe. Josafá Carlos de Siqueira

Universidade Federal do Rio Grande do Sul: Carlos André Bulhões

Universidade Federal de São Paulo: Nelson Sass

Universidade Federal do Rio de Janeiro: Denise Pires de Carvalho

continuam sendo principalmente homens brancos. O mesmo padrão é observado entre os estudantes de universidades aqui e lá fora.

Na Universidade de Yale, onde a maioria dos estudantes é de cor branca, contou Anderson Brito, existem duas associações postdoc: uma para todos os estudantes e uma só para negros, a Yale School of Medicine Black Postdoctoral Association.

“Essa associação de cientistas negros existe por uma razão muito compreensível: a segregação está muito presente. Isso me incomoda profundamente. Por um lado, vejo isso de forma positiva, porque os negros têm um ambiente seguro onde podem congregar, mas, por outro lado, lamento o fato de eles não poderem se integrar com os outros”.

Na opinião de Brito, a primeira mudança necessária para aumentar a visibilidade dos cientistas negros nas redes sociais deve ser sistêmica. “Mais do que tags, a gente tem que ter mais pesquisadores negros. Somos 50% da população, mas não somos 50% daqueles que fazem pesquisa científica”.

LONGE DO CAMPUS

Se não fazem pesquisa científica, é porque não estão no ensino superior. Dos matriculados na USP, por exemplo, menos de 6% se declararam de cor preta, segundo dados do último vestibular.

Em cursos de graduação de todo o país, o Inep mostra que são mais de 3,5 milhões de estudantes de cor branca contra pouco mais de 590 mil de cor preta. E não é só o sistema de ensino superior brasileiro que sofre desse mal, como publicou a instituição britânica The Royal Society, no ano passado.

“Existem projetos de lei no Congresso que buscam ampliar as cotas raciais para pós-graduação (mestrado e doutorado), apesar de algumas universidades já terem adotados esta política, como a Universidade Estadual de Londrina (UEL), no Paraná”, comentou o professor Delton Felipe, diretor de Relações Internacionais da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros (ABPN).

A associação continua lutando pela permanência das cotas raciais na graduação, visto que, em teoria, a lei será revisada em agosto de 2022, no seu aniversário de 10 anos.

Para a professora Katemari Rosa, uma das primeiras brasileiras a usar a tag #ciêncianegra no Instagram, em 2018,  essa realidade só vai acabar se mudar a ordem sociopolítica econômica atual.

“Claro, vamos sempre trabalhar pra combater e tentar enfrentar o racismo, mas a ordem não vai mudar nessa geração ou na próxima. Mesmo assim, não me desanimo. Vou continuar trabalhando pra movimentar com as pessoas, pra retomar essa ideia de quilombo que acho muito poderosa, porque é um meio muito promissor pra, pelo menos, nos fortalecermos dentro dessa estrutura racista.”

Enquanto isso, é sempre bom lembrar que o fato de um cientista (e qualquer outro profissional) ser negro não o obriga a ser um ativista contra o racismo. O posicionamento antirracismo também é dos brancos (ou pelo menos deveria ser).

COMO FIZEMOS ISSO…

A partir de uma lista de hashtags buscamos todas as publicações que contivessem alguma delas no Facebook e no Instagram, por meio da API do CrowdTangle, bem como na lista de perfis de ciência no Twitter monitorados pelo Science Pulse.

O CrowdTangle é uma ferramenta do Facebook que disponibiliza informações sobre páginas (com mais de 50 mil curtidas/seguidores) e grupos públicos (com mais de 95 mil membros) naquela rede, e no Instagram de todos os perfis públicos com mais de 50 mil seguidores ou verificados. No tratamento dos dados, eliminamos entradas totalmente repetidas, aquelas com o mesmo horário de criação e atualização, e aquelas com o mesmo texto de descrição.

O Science Pulse é uma ferramenta de social listening do Núcleoo que monitora cerca de 1.500 perfis de experts e instituições científicas no Twitter. No tratamento dos dados, eliminamos os retweets e mantivemos somente publicações autorais das contas monitoradas.

Reportagem Samira Menezes
Dados Lucas Gelape
Edição Sérgio Spagnuolo e Alexandre Orrico
Arte Rodolfo Almeida

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