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Em 2021, a Secretaria Especial de Comunicação Social (Secom) do governo federal ocultou do Portal da Transparência cerca de R$2,7 milhões
em gastos com publicidade e impulsionamento no Twitter. O órgão utilizou agências terceirizadas como intermediárias para promover conteúdo, evitando que os gastos entrassem no portal, o que dificulta a fiscalização pública sobre quem foram os destinatários finais dos recursos públicos.
Levantamento feito pelo Núcleo com base em notas fiscais emitidas pelo Twitter tendo a Secom como tomadora de serviços revela que, entre janeiro e novembro de 2021, a rede social emitiu 37
notas fiscais, totalizando os R$2,7 milhões
.
A diferença entre as cifras e os valores oficiais mostrados no Portal da Transparência (que totalizam cerca de R$47,5 mil
) ocorre porque agências publicitárias atuaram como intermediárias da Secom na maioria dos negócios. Desta forma, o dinheiro público passa por elas antes de chegar ao Twitter.
É importante porque...
- Impulsionamento e publicidade em redes sociais é chave para o governo, especialmente em ano eleitoral
- Ocultar gastos do Portal da Transparência via gastos com terceiros é uma prática que, embora não seja ilegal, vai contra as melhores práticas de transparência pública
- Governo impulsionou conteúdo que promovia práticas que iam contra o consenso científico sobre a pandemia, como o chamado "tratamento precoce" contra Covid
A prática de utilizar agências terceirizadas não é ilegal, mas dificulta que o valor real pago à rede social seja consultado pelos cidadãos, uma vez que as notas fiscais estão disponíveis apenas no Sistema Eletrônico de Informações (SEI) do Ministério das Comunicações, cujo acesso é mais difícil para os cidadãos e os dados não são agregados.
Questionada por email e por telefone em 6.jan, a Secom não respondeu até a publicação dessa reportagem.
"A legislação brasileira com relação à transparência de publicidade do governo e com regras sobre como deve ser, do que pode ou não pode, foi feita antes do crescimento das redes sociais como a gente conhece hoje", disse Manoel Galdino, diretor da Transparência Brasil.
"Com certeza é ruim que uma coisa tão importante quanto publicidade estatal você não consiga identificar os veículos de maneira clara e fácil. Não acho que tenha que ser proibido colocar intermediários – só é preciso ter uma regra pra quando se usar intermediários, que se consiga deixar claro quem se contratou para fazer a publicidade estatal", disse o especialista em transparência pública.
Em dez.2021, o Núcleo mostrou os gastos diretos do governo federal que constam no Portal da Transparência de Twitter, Facebook e Google.
O Ministério das Comunicações é comandado pelo ministro Fábio Faria (PP), deputado licenciado e genro do empresário de mídia Silvio Santos, dono do SBT, que também recebe dinheiro de publicidade do governo.
O ministério foi recriado em junho de 2020, em um acordo para acomodar Faria e abrir espaço no Executivo para o grupo de partidos conhecido como centrão (PL, PP, Republicanos). Até então, desde o início do governo Jair Bolsonaro (PL), a Secom era diretamente subordinada à Presidência da República.
Os pagamentos feitos pela Secom ao Twitter adicionam mais uma camada ao debate que ganhou tração nas redes sociais nos últimos dias sob a hashtag #TwitterApoiaFakeNews
, considerando que foram promovidos posts com desinformação sobre suspostos "tratamentos" precoces para Covid-19.
Pesquisadores, acadêmicos, jornalistas e figuras políticas têm usado a hashtag para chamar atenção para o fato de que o Twitter não disponibilizou para usuários no Brasil ferramenta para denunciar conteúdo desinformativo ligado à Covid, restando apenas opções genéricas de denúncia. A opção está sendo testada há cinco meses nos Estados Unidos, Coreia do Sul e Austrália.
Questionado por email se o Twitter deu algum tipo de consultoria e assessoria ao governo, a rede informou que "assim como ocorre com outros anunciantes na plataforma, o Twitter atende a órgãos públicos que investem na plataforma para esclarecer dúvidas e dar orientações sobre ferramentas, regras e boas práticas."
"Para impulsionar conteúdos, órgãos públicos devem se certificar como anunciantes de conteúdo com base em causa, e os conteúdos devem observar o cumprimento das regras de conteúdo político - ou seja, não podem mencionar candidatos, partidos políticos, funcionários do governo eleito ou indicado, etc, que caracterizem o conteúdo como uma propaganda político-partidária. Além disso, a segmentação é restrita e limitada a região geográfica, palavra-chave e segmentação por interesses. Não é permitido nenhum outro tipo de segmentação, nem mesmo audiências personalizadas", informou o Twitter via assessoria.
Veja as respostas do Twitter na íntegra:
Impulsionamento precoce
Em janeiro de 2021, o Twitter fez uma cobrança R$26.400 pelo impulsionamento de três tuítes do governo federal que promoviam o falso "tratamento precoce"
Os chamados "tratamentos precoces" ficaram conhecidos como coqueteis de medicamentos sem eficiência no tratamento da Covid, como a hidroxicloroquina, azitromicina e ivermectina, segundo avaliação de organismos internacionais de saúde, como a Organizacão Pan-Americana de Saúde (OPAS) e a Organização Mundial da Saúde (OMS) e, subsequentemente, do próprio Ministério da Saúde.
alardeado por Bolsonaro, seus aliados políticos e seguidores.
"Ao perceber sintomas da Covid19, #NãoEspere, procure uma Unidade de Saúde e solicite o tratamento precoce", dizia um dos textos, publicados na conta oficial do governo federal (@govbr) e posteriormente deletados. Com o impulsionamento, o conteúdo teve 631.784 impressões
, segundo dados repassados à agência Calia Comunicação, que intermediou o negócio.
Apesar de o impulsionamento ter custado R$ 26.400
, o valor que aparece no Portal da Transparência referente ao serviço é de R$2.494,80
, o equivalente a 9,45%
do que foi realmente faturado pela rede social nesse caso.
Na prática, as duas empresas (Calia e Twitter) emitiram notas fiscais pelo mesmo serviço, recolhendo impostos federais em duplicidade. Desta forma, o valor pago pelo governo federal ao Twitter é o mesmo dos impostos que seriam recolhidos originalmente pela rede social, deixando a Calia Comunicação como única responsável pelos tributos referentes ao impulsionamento da campanha “cuidado precoce”.
Esse expediente se repete nas 37
notas fiscais emitidas pelo Twitter tendo a Secom como tomadora de serviços entre janeiro e novembro de 2021. Outras duas agências publicitárias que mantêm contratos com o governo, a Artplan e a PPR, também intermediaram negócios entre o Executivo federal e o Twitter nesse molde.
Em junho do ano passado, a Artplan fez a ponte para uma campanha identificada apenas como “prevenção Covid-19”, pela qual o Twitter recebeu R$364 mil
, conforme consta na nota fiscal nº 63.125, de 3.jul.2021.
Segundo o relatório de métricas da agência, os tuítes impulsionados tiveram 64,5 milhões
de impressões entre os dias 9 e 30 de junho. Já os vídeos da campanha tiveram 30,5 milhões
de visualizações no mesmo período, de acordo com o documento interno do Twitter repassado à agência.
O pagamento referente ao serviço está atualmente em processo de aprovação no Ministério das Comunicações.
A Artplan enviou o detalhamento da campanha à pasta na última segunda-feira (3.jan.2022). Nos documentos, que também estão disponíveis no Sistema Eletrônico de Informações da pasta, consta a nota fiscal emitida pela agência (nº 51.780), que discrimina a cifra cobrada pelo Twitter e também o valor da comissão: R$ 68 mil.
No pedido de inserção (PI), documento que no mercado publicitário é enviado pelas agências às empresas que veiculam a publicidade contratada, a Artplan afirma que “após o pagamento pela Secom, a agência terá até 10 dias corridos para efetuar o repasse ao veículo/fornecedor”.
Ao todo, este caso específico custará R$456 mil
aos cofres públicos.
Relações governamentais
Durante a pandemia, as principais multinacionais que atuam no país expandiram suas áreas de relações governamentais e institucionais, designação corporativa pela qual é chamado o lobby no Brasil.
A informação consta no Anuário Origem, relatório que traça um raio-x do mercado do lobby no país a partir de pesquisa realizada com auditoria independente. Segundo a publicação, “o crescimento da demanda para os prestadores de serviço vem sendo influenciado pelos setores de tecnologia, energia, agronegócios, instituições financeiras e de meios de pagamentos, além de empresas do ramo da saúde”.
Esses profissionais atuam para influenciar políticas públicas em todos os níveis — Executivo, Legislativo e Judiciário, nas esferas federal, estadual e municipal — sempre de acordo com os interesses das organizações que representam, sejam empresas, associações setoriais ou organizações do terceiro setor. Parte do trabalho é montar estratégias de atuação que incluem o contato com agentes públicos.
Durante 2021, representantes do Twitter tiveram ao menos quatro encontros com servidores do Ministério das Comunicações que possuem poder para influenciar ou tomar decisões sobre a alocação da verba publicitária do governo, como:
- Rodrigo Fayad, secretário de Publicidade e Promoção;
- almirante Flávio Rocha, secretário especial de Comunicação Social;
- José Ricardo da Veiga, diretor de mídia da Secom;
- Nizar Ratib Midrei, diretor do Departamento de Publicidade e Pesquisa;
- e André de Sousa Costa, secretário especial de Comunicação.
Segundo o Twitter, uma reunião de 9.nov.2021 entre seus representantes e membros da Secom "teve como objetivo apresentar e tirar dúvidas sobre os formatos de anúncios disponíveis para campanhas de publicidade no Twitter (reunião técnica de trabalho)."
Em 28.jul.2020, o ministro Fábio Faria teve um encontro virtual com alguns dos principais representantes das áreas de lobby do Big Tech no Brasil, representando Facebook, Twitter, Google e WhatsApp. A informação consta na agenda pública de Faria.
Até por terem sido registradas nas agendas públicas, as reuniões não indicam a princípio nenhum ato ilícito.
Porém, levando em consideração que o Twitter possui interesses comerciais com o governo brasileiro — e ao mesmo tempo controla um dos mais relevantes palcos de disputa política na internet —, esses encontros estão sujeitos ao escrutínio público do jornalismo profissional, principalmente durante 2022, ano que será marcado pela disputa presidencial.
Vale notar funcionários da área comercial do Twitter não lidam diretamente com clientes governamentais. Em Brasília, o consultor Christian Mutzig é quem representa os interesses comerciais do Twitter e de outras quatro empresas de mídia (Verizon Media, TikTok, CNN Brasil e Vivo Ads).
Em 30 de junho, data em que terminou a campanha sobre “prevenção Covid-19” pela qual o Twitter recebeu R$364 mil
, Mutzig representou a companhia em uma reunião com Veiga, Midrei e Veiga.
Como fizemos isso
A partir do Sistema Eletrônico de Informações (SEI) do Ministério das Comunicações (que ainda está sob o domínio do Ministério da Ciência e Tecnologia), buscamos todos os processos envolvendo pagamentos de publicidade que citassem a razão social "Twitter do Brasil Rede de Informação Ltda".
Desta forma, tivemos acesso aos documentos (notas fiscais, memorandos, ofícios, despachos e registros de pagamentos). O passo seguinte foi estruturar essas informações e cruzá-las com dados do Portal da Transparência, que no campo de observação informa qual é a nota fiscal e o memorando referente a cada pagamento.
Assim, conseguimos identificar a discrepância entre os valores informados nas notas fiscais emitidas pelo Twitter e no site do governo federal.
As notas fiscais da apuração podem ser consultadas neste link.
Reportagem Alexandre Aragão
Reportagem adicional Laís Martins
Arte Rodolfo Almeida
Edição Sérgio Spagnuolo
Texto atualizado às 13h47 de 7.jan.2021 com posicionamento do Twitter.
Texto atualizado as 14h13 de 7.jan.2021 para remover link que poderia colocar em risco um dos citados na materia.
Texto editado às 10h34 de 9.jan.2021 para deixar alguns trechos mais claros. Nenhuma informação foi alterada.