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Reportagem Laura Scofield, Nathallia Fonseca
Essa reportagem foi originalmente publicada pela Agência Pública e faz parte do Sentinela Eleitoral, projeto que investiga e analisa as redes de manipulação do debate público (fake news) nas eleições em parceria com o Berkman Klein Center for Internet & Society da Universidade de Harvard.
“Togados, vagabundos, preparem-se”, alertou um homem em um vídeo feito no Kwai, rede social chinesa que existe para criar e compartilhar vídeos curtos. “Nós não vamos só invadir o STF [Supremo Tribunal Federal] não, nós vamos pendurar vocês de cabeça para baixo”, ameaçou.
“VAMOS EXPULSAR OS CRIMINOSOS DO PODER”, escreveu um usuário ao compartilhar o conteúdo, em caixa alta no original. A mensagem foi a segunda mais compartilhada em grupos de WhatsApp bolsonaristas no dia 11 de julho, onde chegou a 31 compartilhamentos em 27 grupos.
No dia seguinte, o vídeo bateu o próprio recorde: foi compartilhado 41 vezes em 31 grupos. Cerca de duas semanas depois, Alexandre de Moraes, ministro do STF e atual presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) ordenou que o homem identificado como Ivan Rejane fosse preso temporariamente. O ministro também pediu mais informações sobre o grupo de Telegram “Caçadores de ratos do STF”, do qual Rejane participava com mais 158 pessoas.
Levantamento exclusivo da Agência Pública com dados do projeto Eleições Sem Fake, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), descobriu que aplicativos como TikTok e Kwai foram responsáveis por 41,3% dos vídeos compartilhados em grupos de WhatsApp entre os dias 1º de julho e 31 de agosto. O TikTok dominou a amostra: 108 dos 133 vídeos foram feitos no aplicativo. O Kwai respondeu por 24 e ao menos um conteúdo apresentou os dois logos sobrepostos.
Dos 133 vídeos do WhatsApp bolsonarista analisados pela reportagem, ao menos dez propagam informações falsas sobre o sistema eleitoral ou defendem o voto impresso. Outros oito afirmam que o atual líder das pesquisas, Lula, cancelaria o Pix se eleito, o que é falso. Também existem ao menos dois vídeos que criticam as pesquisas eleitorais, afirmando que, ao contrário do que indicam os dados, Bolsonaro estaria à frente na corrida presidencial e dois que fazem ameaças ao STF. O restante dos conteúdos fazem críticas gerais à esquerda e ao PT (61) ou declaram apoio a Bolsonaro (27). Apenas seis vídeos do levantamento são contrários ao atual presidente.
TikTok e Kwai cresceram com a promessa de facilitar a edição e o compartilhamento de vídeos, que podem ser baixados e levados para outras plataformas. As redes têm ferramentas que facilitam a mixagem de conteúdos, edição de som, imagem e vídeo. De acordo com investigação do Aos Fatos, esses mecanismos têm sido usados para cortar e descontextualizar gravações de forma a gerar desinformação.
A circulação do conteúdo para além da plataforma onde foi feito esbarra em um ponto cego de responsabilidade: apesar de produzidos dentro de redes específicas, os vídeos são largamente compartilhados em outros canais, o que dificulta o controle sobre as informações falsas e discurso de ódio.
“Vamos deixar isso acontecer novamente?”
No dia 25 de julho deste ano, o vídeo mais compartilhado em grupos de WhatsApp bolsonaristas afirmava que a eleição de Dilma Rousseff (PT) em 2014 foi fraudada e levantava dúvidas sobre a segurança das urnas eletrônicas. O trecho de dois minutos e meio foi editado no TikTok pela conta @fabioprange e reproduzia parte de um documentário da Brasil Paralelo, produtora gaúcha que lançou filmes que negam desmatamento e distorcem a temática indígena, como revelou apuração da Pública.
“Vamos deixar isso acontecer novamente?”, perguntava o vídeo. O conteúdo chegou a 36 compartilhamentos em 23 grupos de WhatsApp. No TikTok, circulou ao menos até 18 de agosto, quando foi retirado do ar depois que a reportagem compartilhou o link com a plataforma.
Também foi feito no TikTok o conteúdo que ocupou o 1º e 4º lugares em maior número de compartilhamentos no dia 14 de julho, e a 3ª posição no ranking do dia seguinte. Na gravação, Luiz Alberto — dono do canal @luizalbertoradio no Tiktok — diz que as Forças Armadas descobriram uma possível fraude nas eleições de 2014 e 2018, e que Bolsonaro iria divulgar as provas. O canal tem cerca de 97.6 mil seguidores e soma mais de 790 mil curtidas com conteúdo pró-Bolsonaro. O vídeo em questão não está mais disponível, mas chegou a ao menos 174 compartilhamentos no WhatsApp.
O vídeo mais compartilhado de toda a amostra foi feito no TikTok e chegou a 219 compartilhamentos em 135 grupos em 17 de agosto. O conteúdo mostra os ex-presidentes Lula e Dilma cumprimentando o ministro Alexandre de Moraes durante sua posse como presidente do TSE. Uma legenda diz: “Esse ai que vai cuidar das eleições. Deus tenha piedade de nós”. Até 9 de setembro, já havia sido visualizado por mais de 883 mil pessoas e tido mais de 23 mil compartilhamentos, 42 mil curtidas e 2.362 comentários no canal @eumostroaverdade.
Outro vídeo feito no TikTok ficou entre os mais compartilhados no dia 27 de agosto. O corte de um programa da Jovem Pan, emissora que tem servido como um braço auxiliar do bolsonarismo, mostra um comentarista dizendo que não vai entregar seu celular ao mesário, ao contrário do que manda o TSE. O conteúdo chegou a 58 compartilhamentos e apareceu em 51 grupos no WhatsApp. A reportagem não identificou o vídeo em seu canal original no TikTok, mas o mesmo foi repostado por ao menos outros dois canais com a marca d’água do criador. No canal @politicabrasileiraa chegou a 2,8 milhões de visualizações e 187 mil curtidas.
Além do TikTok, também circularam mentiras sobre as urnas no Kwai e fora dele. No dia 23 de julho, um vídeo afirmava que o “STE (sic) comprou 32 mil urnas grampeadas para definir as eleições”, o que já foi desmentido. “Por isso q (sic) O STF e TSE fazem tanto esforço em defesa das Urnas. Vão tomar as eleições na mão grande, no tapetão, igual fizeram na Venezuela”, comentou um usuário do grupo “BOLSONARO 100%” ao compartilhar o conteúdo.
Em 2018, uma pesquisa realizada pelo instituto IDEA Big Data com usuários do Facebook e Twitter apontou que 89,77% dos eleitores de Jair Bolsonaro foram expostos a algum tipo de conteúdo inverídico. Neste ano, de acordo com estudo da Poynter Institute, 44% dos brasileiros dizem receber notícias falsas diariamente.
Desinformação em vídeo
Para o pesquisador Orestis Papakyriakopoulos, que estuda o consumo de conteúdo político no TikTok no Centro de Política de Tecnologia da Informação da Universidade de Princeton, o TikTok e o Kwai poderiam impedir o download de conteúdos que contenham possível desinformação sobre eleições ou outros temas sensíveis como forma de barrar a disseminação de notícias falsas.
Papakyriakopoulos considera que as plataformas onde são criados conteúdos desinformativos e antidemocráticos devem ser responsabilizadas por isso e tomar atitudes, mas entende que é necessário que Estados e Parlamentos façam parte desse processo. “Não acho que a rede deve decidir sozinha como agir”.“
Se um vídeo do TikTok está sendo compartilhado no WhatsApp, é possível detectar esse tipo de comportamento e tomar atitudes, mas também surgem questões sobre liberdade de expressão”, alerta Papakyriakopoulos, que considera que falta transparência por parte das redes para que a academia e a sociedade civil respondam a essas perguntas.
Em retorno à reportagem, o TikTok disse que leva “extremamente a sério a responsabilidade que temos em proteger a integridade da plataforma e das eleições” e conta “com uma série de recursos para ajudar os usuários a terem acesso a conteúdo educativo e confiável sobre as eleições brasileiras”.
A rede destacou que “proíbe e remove informações falsas sobre processos cívicos, comportamento de ódio e outras violações de suas Diretrizes da Comunidade” e afirmou que o TikTok não é “o principal destino para o debate político ou notícias de última hora”, o que teria levado a plataforma a banir anúncios políticos pagos. Confira na íntegra.
O Kwai também disse possuir “mecanismos de segurança que atuam combinando inteligência artificial e análise humana para identificar e remover o mais rápido possível conteúdos que violem ou infrinjam essas políticas assim que identificados” e informou “não tolerar” conteúdos “manipulados com intenção de atacar um indivíduo, grupo ou organização ou que tente obstruir processos democráticos”. Confira na íntegra.
Ambas as plataformas possuem parcerias com agências de checagem de fatos durante as eleições. De janeiro a março deste ano, o TikTok informou ter uma taxa de remoção de 83,6% de vídeos denunciados na categoria integridade e autenticidade. O Kwai, em seu relatório anual de transparência, informou que entre julho e dezembro de 2021 removeu 12,3 mil vídeos por violação de diretrizes. As remoções representam 2% do total de vídeos carregados na plataforma até então.
A reportagem questionou as plataformas sobre sua responsabilidade na geração e disseminação de vídeos com informações falsas sobre o sistema eleitoral e o fato de que esses conteúdos circulam em outras redes, mas TikTok e Kwai não responderam. A Pública também pediu mais informações sobre o funcionamento dos algoritmos para indicação de conteúdos políticos e não recebeu resposta concreta.
Metodologia
A reportagem analisou os seis vídeos mais compartilhados em todos os dias de julho e agosto no monitor de WhatsApp do projeto Eleições Sem Fake e identificou quais foram feitos por meio dos aplicativos TikTok e Kwai a partir da presença da marca d’água dos aplicativos nas gravações. Foram analisados 322 vídeos (alguns dias não apresentavam seis vídeos como mais compartilhados).