Ambev mira mulheres e jovens em anúncios no Face e no Insta

Mulheres são mais vulneráveis aos malefícios do álcool e grupo no qual o consumo mais avança no país, enquanto homens de 18 a 34 anos têm maior índice de consumo abusivo
Ambev mira mulheres e jovens em anúncios no Face e no Insta
Arte por Rodolfo Almeida/Núcleo Jornalismo
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A Ambev tem investido, nos últimos meses, em anúncios segmentados de cerveja no Facebook e no Instagram para atingir os grupos mais vulneráveis a danos da bebida na saúde, especificamente mulheres e jovens entre 18 e 34 anos, de acordo com um levantamento do Núcleo com base na biblioteca de anúncios da Meta.

Segundo a última Pesquisa Nacional de Saúde (PNS) do IBGE, de 2019, essas são as faixas demográficas em que o consumo de álcool mais cresce no Brasil.


É importante porque...

Demografias com o maior índice de consumo abusivo no país, homens entre 25 e 34 anos e jovens entre 18 e 24, foram alvo do marketing direcionado da Ambev.

Mais vulneráveis a doenças associadas ao consumo de álcool e grupo com o maior avanço no consumo de bebida no país, mulheres de todas as faixas etárias também foram alvo desses anúncios.

Um relatório da Organização Mundial da Saúde (OMS) destacou que o marketing de álcool direcionado a mulheres, jovens e bebedores pesados avançou e se beneficia de uma regulação frágil sobre publicidade nas redes sociais.

Falta transparência no impulsionamento de anúncios de bebidas alcoólicas nas plataformas digitais e esta reportagem apresenta dados concretos sobre a segmentação da indústria.


A análise só foi possível porque muitas dessas peças de publicidade, inadvertidamente, receberam na plataforma da Meta um rótulo destinado a anúncios com “temas sociais, eleições ou política”, os quais automaticamente são expostos com detalhes sobre público-alvo e valores na biblioteca de anúncios (esses rótulos são auto-declarados).

Com isso, o Núcleo conseguiu ver informações sobre alcance, gastos e público-alvo desses anúncios, mesmo que alguns não tenham correlação com temas sociais. Só a Skol, por exemplo, teve como conteúdo de cunho social publis num total de R$420 mil relacionadas ao Zé Delivery, app de entregas da companhia.

A Ambev diz ter realizado “duas grandes ações institucionais focadas em sustentabilidade e impacto social neste ano”, mas não explicou como anúncios sem relação a esses temas foram parar na página de transparência da plataforma.

Procurada, a Meta também não respondeu por que essas campanhas receberam essa classificação ou se isso foi algum tipo de falha.

Nota enviada pela Ambev

A Ambev realizou duas grandes ações institucionais focadas em sustentabilidade e impacto social neste ano. A primeira teve amparo em uma campanha de promoção do uso de garrafas retornáveis, que, além de serem uma opção mais econômica para os consumidores, são uma excelente opção na perspectiva ambiental. A outra ação, que ainda está com sua campanha no ar, é sobre inclusão produtiva e seus impactos positivos reais nas vidas de milhões de brasileiros.

Especialistas consultados pela reportagem estranharam o uso desse selo para os anúncios, já que as regras da rede social não prevêem o uso dessa classificação para conteúdos de bebidas ou delivery.

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Segundo a página Central de Ajuda da Meta Para empresas, "temas sociais são tópicos sensíveis muito discutidos, que podem influenciar o resultado de uma eleição ou gerar/relacionar-se a um projeto de lei ou a uma legislação. Exigimos maior autenticidade e transparência para veicular anúncios sobre temas sociais que buscam influenciar a opinião pública por meio de discussão, debate ou defesa de tópicos importantes, como saúde e direitos civis e sociais."

No Brasil, esses tópicos são:

* Direitos civis e sociais;
* Crime;
* Economia;
* Educação;
* Política ambiental;
* Armas;
* Saúde;
*Imigração;
* Valores políticos e governança;
* Segurança e política externa

Só em quatro campanhas que circularam com 87 versões diferentes de segmentação de audiência ao longo de ago.2023, por exemplo, a empresa de bebidas gastou cerca de R$70 mil para influenciar mulheres jovens a baixarem o app do Zé Delivery.

“Com a emancipação feminina e a mudança da cultura de que homem pode beber e mulher não, eles (a indústria do álcool) aproveitaram essa onda”, diz a médica psiquiatra Ana Cecília Marques, do conselho consultivo da Associação Brasileira de Estudos do Álcool e Outras Drogas (Abead). “Quanto mais nova ela beber, melhor, porque fideliza.”

Entre agosto e outubro, a Ambev foi a maior anunciante de temas sociais e políticos da plataforma, com R$1,66 milhão investidos entre anúncios de cerveja e campanhas sobre sustentabilidade, gasto que fez a empresa de bebidas superar a Brasil Paralelo no ranking de “marketing político” da Meta.

O valor é baixo se comparado à soma bilionária que a empresa investe anualmente em publicidade, mas esses dados permitem analisar uma amostra da estratégia digital de segmentação de anúncios da companhia.

O que dizem as regras de publicidade de cerveja no Brasil

A única restrição de público na publicidade de cervejas e vinhos se dá para menores de 18 anos, segundo o código do Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (Conar). As regras também estipulam que "a publicidade não deverá induzir, de qualquer forma, ao consumo exagerado ou irresponsável". Não há normas especiais para anúncios digitais, que têm as mesmas regras que os destinados à TV, rádio ou jornais. No Brasil, a única restrição da Meta é contra o direcionamento a menores de idade.

Publis da Ambev que circularam ao longo de agosto continham links segmentados para se baixar o app Zé Delivery – 54 versões focaram em links para iPhone e outras 33 para celulares Android. Reprodução: Biblioteca de Anúncios/Meta
Cerca de 55% dos perfis atingidos pelas publis do app em iPhones foi de mulheres entre 18 e 34 anos; padrão se repetiu nos anúncios para Android, com foco maior no público feminino a partir dos 25 anos. Reprodução: Biblioteca de Anúncios/Meta

IMPULSIONA REDONDO. Entre as publis feitas pela Ambev, a empresa gastou ao menos R$350 mil para uma nova série de anúncios que promoveram o Zé Delivery ao longo de setembro.

O principal público-alvo dessa leva de publis foram homens entre 25 e 34 anos, a faixa etária com o maior índice de consumo abusivo de álcool do país. Mulheres da mesma idade também foram visadas pela campanha.

“Por volta de 40% do faturamento da indústria do álcool está ligado ao consumo abusivo”, diz a socióloga Paula Johns, diretora-executiva da Aliança de Controle do Tabagismo (ACT - Promoção da Saúde). “Qual a empresa que pode se dar ao luxo de abrir mão de uma margem de consumo dessas?”

O IBGE considerou consumo abusivo beber x doses por semana. Arte: Rodolfo Almeida

Consumo abusivo de álcool

A pesquisa do IBGE considera consumo abusivo de bebidas alcoólicas quando o homem ingere cinco ou mais doses, ou quando a mulher ingere quatro ou mais, em uma única ocasião e pelo menos uma vez nos últimos 30 dias. Uma dose equivale a uma lata de cerveja, a uma taça de vinho ou a um martelinho de destilado. Segundo dados do Ministério da Saúde, esse tipo de consumo tende a reduzir a partir dos 35 anos de idade.

* Estado mais visado pelos anúncios da Ambev na Meta, São Paulo teve o maior avanço no consumo semanal de álcool medido pela PNS entre 2013 e 2019 – foram 11,5% a mais de consumidores entre os jovens de 18 a 24 anos e um extra de 7,4% entre as mulheres.

* Quase 24% dos homens entre 25 e 34 anos relataram um consumo abusivo de álcool, seguidos de 23% dos que têm entre 18 e 24, os maiores índices medidos pela PNS. O grupo foi a demografia mais visada em ao menos R$ 350 mil gastos em publis pela Skol na Meta, seguido das mulheres jovens.

* Entre 2013 e 2019, o consumo de álcool avançou 4,1% entre mulheres e 0,8% entre homens. Mulheres de todas as idades foram visadas pelas publis, inclusive as com mais de 55 anos.

Entenda o dado citado por Johns

Os números citados pela diretora-executiva da ACT são de um estudo norte-americano de 2006 que estimou que entre 37,5% e 49% do faturamento da indústria do álcool no país viria do consumo por menores de idade ou do abuso por adultos. O dado foi apresentado a Johns durante uma apresentação da Organização Pan-Americana da Saúde (Opas), entidade que tem buscado convencer governos a aumentarem os impostos das bebidas no continente. A iniciativa faz parte de uma meta da OMS para reduzir o consumo global de álcool. "Defendemos mais impostos para mitigar as externalidades", afirma Johns.

Procurado pela reportagem, o Conar disse que “neste ano não houve queixas relacionadas à Ambev por questionamentos sobre sustentabilidade ou a divulgação de ações sociais da empresa” e que analisa apenas “o conteúdo das mensagens publicitárias”.

Já a Meta se limitou a responder com dois links. Um da Central de Ajuda da Meta para Empresas, sobre quais são os temas classificados como “sociais” e outro material sobre como funcionam os rótulos e por quem são aplicados.

FOCO NELAS. Além de imagens estáticas, entre agosto e outubro, a Ambev também usou o selo de “tema social” no impulsionamento de ao menos quatro publis de vídeos de influencers digitais – três mulheres.

O anúncio com o maior investimento, cerca de R$ 125 mil, exibe uma mulher colando em um poste uma placa com a frase “eu quero uma cerveja e você também”. Só no Instagram, esse vídeo atingiu 25 milhões de visualizações.

Os dados de impulsionamento mostram que essa campanha visou principalmente mulheres a partir dos 35 anos, sobretudo aquelas entre 55 e 64 anos.

“Há uma ausência de políticas para o controle do álcool”, lamenta Paula Johns, da ACT. “Eles nadam de braçada e conseguiram ao longo das últimas décadas evitar que sejam regulados de modo similar ao que houve com o tabaco.”

SAIBA MAIS — Efeito nocivo do álcool nas mulheres

Mulheres têm menos enzimas hepáticas, corpos com mais gordura e neurônios mais susceptíveis à toxicidade do álcool do que os homens, fatores que tornam a bebida mais danosa.

"Elas vão ter hepatite, cirrose ou hipertensão antes que um homem, se fizerem esse uso crônico e precoce", explica Cecília Marques. "Aí nem falamos de dependência porque a intoxicação, o porre das sextas-feiras, em termos de consequência e danos, é parecido e não é necessário ser dependente para se ter uma das doenças relacionadas ao álcool".

A médica psiquiatra ressalta que as diretrizes mais recentes e com as melhores evidências, feitas pelo Canadá, ressaltam que o índice de consumo menos arriscado a mulheres se limita a apenas uma cerveja por semana.

Atualmente, a OMS estabelece esse limite como uma lata ao dia.

CERVEJA COM META. A segmentação dos anúncios da Ambev vão de encontro a um relatório da OMS lançado em maio do ano passado. O documento afirma que o marketing digital para a promoção do álcool visa os mais jovens e bebedores pesados.

“A coleta e análise de dados sobre hábitos e preferências dos usuários por provedores globais de internet criaram novas e crescentes oportunidades para os comerciantes de bebidas alcoólicas direcionarem mensagens para grupos específicos, além das fronteiras nacionais”, destacou a nota da organização à imprensa.

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O que sugere o relatório da OMS. Com o título de "Reduzindo os danos do álcool - ao regular o marketing, a publicidade e a promoção transfronteiriça do álcool", o relatório ressaltou que, embora a maioria dos países regule o marketing de álcool na mídia tradicional, quase metade não tem regulamentações para sua promoção na internet (48%) e mídias sociais (47%). O documento ressalta a necessidade de restrições ou proibições mais abrangentes à comercialização de álcool como estratégia de saúde pública.

Nem Meta ou Ambev explicaram por que os anúncios de cerveja revisados pelo Núcleo foram marcados como “de tema social”, mas especialistas consultados pela reportagem disseram que a estratégia pode estar ligada à busca por mais eficiência no uso dos algoritmos da plataforma para promover bebidas, já que o uso não viola nenhuma regra.

“O anúncio que entra como cunho social ou ESG tem mais alcance com menos dinheiro”, analisa o publicitário Gustavo Bastos, sócio-diretor da agência 11:21, que conta com uma cervejaria no seu portfólio de clientes. “O algoritmo por uma questão de marketing da Meta te dá um alcance muito maior de publicação de tema social do que quando você anuncia como bebida alcoólica.”

Conforme a própria página da plataforma, hoje a Meta tem uma “parceria de sucesso” com a Ambev para melhorar o retorno de seu investimento em mídia digital, que se tornou o maior foco publicitário da companhia bilionária de bebidas.

A página da parceria diz que as equipes de marketing de ambas empresas desenvolveram um método que “contempla a eficácia dos anúncios, a eficiência do valor investido nos canais e o quanto as ações geram em vendas” com uma “maior automação” na entrega desses anúncios.

As perguntas não respondidas que enviamos à Meta

1) Os anúncios da Ambev terem sido listados como sendo de temas sociais impactam de algum modo o impulsionamento desses conteúdos, sobretudo em relação aos públicos atingidos? Qual a diferença prática para o anunciante que escolhe essa categoria?

2) Quais restrições de distribuição sofrem conteúdos sobre bebidas alcoólicas nas plataformas da Meta? Os anúncios exemplificados, e marcados como de temas sociais, sofreram tais restrições?

3) De que maneira a Meta previne que conteúdos sobre bebidas alcoólicas, como os promovidos pela Ambev, atinjam menores de idade?

As perguntas não respondidas que enviamos à Ambev

1) Por que publis da Ambev sem relação com temas sociais estão marcadas com esse selo? Entre os exemplos enviados, há materiais que apenas promovem cerveja.

2) Marcar as publis como "temas sociais" na Meta traz alguma diferença em alcance ou públicos atingidos para a Ambev, em comparação às demais propagandas da empresa?

3) Em particular nas publis feitas com influenciadores, como a Mare Sanz e a Não Como Alface, me pareceu que a Ambev misturou temas ESG com a promoção do consumo de cerveja. A estratégia publicitária da empresa é tentar associar o consumo de álcool a sustentabilidade?

4) Especialistas que entrevistei apontam que a indústria do álcool tem se esforçado em suas campanhas publicitárias nas últimas décadas para aumentar a quantidade de mulheres que bebem. Essa tendência demográfica é perceptível nas últimas pesquisas de saúde do IBGE. Considerando que identifiquei três anúncios impulsionados como tema social que usam influencers mulheres, eu gostaria de saber se isso faz parte de uma estratégia da Ambev em atrair mais clientes neste público.

5) Por que não há anúncios de refrigerantes ou outros produtos da Ambev no rol de anúncios de temas sociais, e apenas propagandas de cervejas ou ligadas à sua fabricação?

Em contatos posteriores, reforçamos preocupações com o direcionamento dos anúncios para jovens e mulheres, mas a empresa preferiu não se manifestar sobre suas estratégias digitais.

Ambev e Meta têm parceria de "ciência de marketing" para otimizar anúncios na plataforma. Arte: Rodolfo Almeida.
Arte: Rodolfo Almeida.
Arte: Rodolfo Almeida

Foco do marketing em jovens influencia menores de idade

Na avaliação de Cecília Marques, o foco publicitário em jovens na faixa entre 18 e 29 anos influencia menores de idade a beberem. "Quem que é o maior fã do rapaz de 25 anos? É o adolescente, que está indo para a idade adulta", avalia Cecília Marques. "Aí crio um modelo de consumo para quem tem 25 anos que vai influenciar o adolescente a beber e replicar." A médica psiquiatra aponta que esse efeito é visível no avanço do uso de álcool entre adolescentes mulheres, que também estariam sendo impactadas pela publicidade destinada ao público feminino. "Quanto mais cedo experimentar álcool, maior a taxa de dependência", explica. "Se jovens experimentam depois dos 18, a chance de ficar dependente cai muito, mas, se começou com 12, pode rezar".

Como fizemos

Após consulta à plataforma de anúncios políticos da Meta, identificamos que a Ambev foi a maior anunciante no último trimestre por meio da página da empresa e de uma de suas marcas, a Skol.

Em seguida, entre as dezenas de anúncios disponíveis, a maior parte de baixos valores, localizamos aqueles aos quais foram destinados somas relevantes, como R$ 350 mil, R$ 125 mil ou R$ 70 mil.

Cruzamos os gráficos de segmentação disponíveis nesses anúncios com dados da OMS e da PNS. Também checamos os demais anúncios disponíveis em busca de mudanças no padrão de propaganda visando jovens ou mulheres, mas não encontramos alterações relevantes.

Você pode consultar os relatórios da biblioteca de anúncios da Meta das páginas da Ambev e da Skol para revisar os mesmos dados a que tivemos acesso.

Reportagem Pedro Nakamura
Arte e gráficos Rodolfo Almeida
Edição Sérgio Spagnuolo

⚠️ Texto atualizado às 17h21 de 14.nov.2023 para esclarecer, no 3º parágrafo, que os rótulos de “temas sociais” são auto-declarados pelos anunciantes, e não aplicados diretamente pela Meta, e também esclarecer que os detalhes que ficam visíveis na plataforma são de demografias e valores gastos.

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