No Facebook, a saga de vendedores contra prejuízos na Shopee

Organizados em grupos no Facebook, vendedores relatam dificuldades de comunicação e prejuízos com a plataforma de comércio eletrônico
No Facebook, a saga de vendedores contra prejuízos na Shopee
Arte: Rodolfo Almeida/Núcleo Jornalismo

Dia após dia, reclamações sobre problemas com a Shopee se avolumam em grupos no Facebook de vendedores associados, que não poupam palavras para criticar a plataforma de comércio eletrônico pelas mais diferentes situações – muitas relacionadas a prejuízos com problemas de logística na entrega das mercadorias.

Somando quase 160 mil membros no total, os três principais grupos na rede social se tornaram não só um centro para queixas, mas também uma espécie de rede de apoio para esses vendedores.


É importante porque...

A Shopee se popularizou nos últimos anos no Brasil, com campanhas que muitas vezes se popularizam nas redes, mas há indícios de dificuldades em suas operações locais e na América Latina

Grupos no Facebook servem quase como grupos de apoio para vendedores, mostrando que a rede social segue forte como espaço para comunidades específicas


Por ali, eles se ajudam para resolver etapas simples do processo de venda através da Shopee – como emissão da nota fiscal e geração de etiquetas para o envio dos produtos – e se queixam de problemas mais graves, como a impossibilidade de enviar uma mercadoria por causa de frete indisponível e até sumiço de mercadorias que já foram reembolsadas aos compradores.

As reclamações desses vendedores somam às recentes notícias negativas que a empresa tem tido no Brasil – visto como um mercado de crescimento para a SEA, dona da Shopee com sede em Cingapura. O lançamento no Brasil foi em 2019.

Os negócios vinham aparentemente bem: o conglomerado relatou em seu balanço do 4º trimestre de 2021 um crescimento de 400% nas vendas brasileiras no período, totalizando 140 milhões de encomendas, além de ser um dos principais apps de comércio eletrônico do país.

Mas notícias desanimadoras para a plataforma  começaram a aparecer na imprensa recentemente.

Em jun.2022, a empresa demitiu 50 funcionários no Brasil, depois de ter reduzido benefícios a consumidores, especialmente relacionados a fretes. Em 8.set.2022 vieram mais notícias desanimadoras em relação às operações da Shopee na América Latina, que anunciou sua saída total na Argentina e redução de operações em México, Colômbia e Chile.

O presidente-executivo do marketplace, Chris Feng, disse em um e-mail interno visto pela Reuters que "à luz da atual elevada incerteza macro", a empresa precisava "concentrar recursos nas operações principais".

O Núcleo tentou repetidamente uma resposta da Shopee para esta reportagem, inclusive estendendo o prazo de publicação a pedido da assessoria de imprensa, mas não obteve um posicionamento oficial.

DE ONDE VEM A SHOPEE: A Shopee pertence à empresa de comércio digital SEA, que tem sede em Cingapura e valor de mercado de US$33,1 bilhões (ref. 16.se.2022). A SEA teve um faturamento de US$10 bilhões em 2021, com prejuízo de US$2 bilhões no ano. A Shopee possui escritórios em 21 cidades em 13 países.

A plataforma enviou sua resposta aos questionamentos um dia após a publicação da reportagem.

Resposta na íntegra da Shopee
Veja a resposta da Shopee à nossa reportagem sobre a saga de vendedores contra prejuízos com a plataforma de comércio eletrônico. Posicionamento Geral: “A Shopee continua trabalhando e apoiando a comunidade de consumidores e vendedores brasileiros. Estima-se que o marketplace se tornou a principa…

Frete indisponível

Uma das queixas mais comuns nos grupos de vendedores é a indisponibilidade de fretes, um problema da plataforma que afetou a vendedora Sara Espanhol. Ela administra, junto ao marido, uma pequena loja de venda de vasos para plantas, a Natubloom.

No final de janeiro deste ano, os dois decidiram se associar à Shopee. As vendas começaram tímidas, de um a dois pedidos por semana. Mas uma promoção no dia 7.jul – chamada de 77 – provocou uma "explosão de vendas", nas palavras dela.

"A gente recebeu 70 pedidos. Antes da promoção fazíamos 12 vendas por semana", conta Sara.

O casal decidiu então se preparar para a próxima promoção, em 8.ago. Desembolsaram R$1,2 mil para comprar embalagens, impressora, computador, material para produzir os vasos – feitos artesanalmente em casa.

Três dias antes da promoção, uma mudança no sistema de entregas comprometeu os planos.

Até começo de agosto, a vendedora usava os Correios para despachar os pedidos para os clientes. Porém, no dia 3, eles foram colocados na modalidade de coleta, quando uma transportadora deveria passar na casa dela para pegar os produtos. Mas Sara descobriu que a empresa não atendia no endereço dela e, por isso, procurou o Shopee para voltar para o sistema antigo.

Ela só não esperava que o marketplace a deixasse sem nenhuma possibilidade de envio das mercadorias. Ou seja, se um cliente se interessar por um produto dela, ele vai se deparar com a mensagem Indisponibilidade de frete e, com isso, não vai conseguir finalizar a compra.

Sem vendas por quase um mês, ela decidiu criar um site próprio para vender os produtos, lançado no fim de agosto.

"A Shopee é uma plataforma que deveria ajudar, não atrapalhar e causar tanto estresse".

O atendimento da plataforma a seus vendedores também tem deixado a desejar para muitos, gerando diversas reclamações.

Quem também se prejudicou por conta da indisponibilidade de frete foi a vendedora Rute Kelry, que usa a Shopee há 4 meses e está desde o dia 15.ago sem poder comercializar nenhum produto devido ao problema. Seus pedidos ao suporte da empresa não renderam resultados rápidos, e ela perdeu dinheiro com isso.

"Entrei em contato via chat do app e nada de resolver. Mandei mensagem no Reclame Aqui, chat do Instagram, Facebook. Enviei vários e-mails. E a única coisa que me falaram foi para esperar 48h – porém já faz 11 dias. E nada de resolver", reclama a vendedora.

"Todos esses 11 dias estou entrando em contato e eles me pedem para ter paciência. Porém não tem como. No chat da Shopee, os atendentes não sabem explicar o que está acontecendo. Não é só comigo, mas com várias pessoas. Dizem que é uma anomalia no sistema, porém nada é resolvido."

Por conta do problema, Rute conta que as vendas caíram "drasticamente" e que está tentando vender em outro marketplace, no Mercado Livre.

"Até agora estou com apenas seis vendas de clientes que conseguiram comprar. Para uma loja pequena, que saía de 10 a 30 encomendas por dia e agora tenho uma saída de três a seis vendas, é bem baixo."
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Devolução de produtos

Outra queixa recorrente entre os vendedores associados à Shopee em grupos no Facebook é a devolução de produtos vendidos.

Eles reclamam do reembolso antecipado da plataforma, antes mesmo do envio da mercadoria pelo consumidor, e ainda do "sumiço" de produtos no caminho da entrega ou na hora da devolução.

Uma vendedora que pediu para não ser identificada calcula um prejuízo de R$2,6 mil entre fevereiro a junho deste ano com o "sumiço" de 76 pedidos.

"O comprador acusou que não recebeu o produto. Neste caso, o Shopee devolveu o dinheiro para o comprador e nós ficamos sem produto, nem dinheiro que deveria ter recebido”
- vendedora da Shopee

O primeiro chamado dela no marketplace foi aberto em março, porém, até agora nada foi resolvido. "Muitos pedidos aparecem 'pedido coletado' no rastreamento, mas nunca atualizam. Nesse caso, normalmente é que o pedido foi roubado por motoboy que fez coleta ou no centro logístico. Mas Shopee raramente nos devolve dinheiro."

Ela auxilia o namorado na empresa de eletrônicos e acessórios, que iniciou as vendas no Shopee há cerca de um ano.

O casal começou como pessoa física e, por conta disso, as entregas eram feitas pelos Correios, sem registro de problemas, segundo ela. Em outubro do ano passado, eles migraram para pessoa jurídica e tiveram que usar os serviços de transportadoras.

Enquanto para os consumidores o reembolso aparenta ser rápido, para os vendedores ele tende a demorar.

O vendedor Gustavo Yoshizaki Luizi, da Yoshi Pena Store, aguarda há três meses para receber R$370 por um produto que chegou quebrado na casa do cliente. Segundo ele, a mercadoria acabou estragando durante o transporte.

"Neste caso eu levei o prejuízo, a pessoa ficou com o produto, o reembolso foi dado. Entrei em contato com a Shopee e faz mais de três meses que eles estão me dando prazos de dez dias úteis para me dar esse reembolso."

O vendedor procurou o Procon-SP que, por não se tratar de uma relação empresa-consumidor, não poderia agir neste caso.

"Isso acaba gerando uma insegurança. Pra quem eu recorro agora? Eu vou entrar no Pequenas Causas por causa de R$ 400? É cabível o tempo que vou perder, a dificuldade que vou ter em fazer esse processo sozinho? Não tem nenhuma esfera institucional que trate deste intermédio entre a Shopee e os vendedores."

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Luizi começou a usar a plataforma em janeiro de 2022 como pessoa física e depois migrou para pessoa jurídica. Com a troca, acabou passando da entrega pelos Correios para as transportadoras. Mas por um mês os produtos foram se acumulando em casa, sem serem retirados na casa dele – na modalidade conhecida como coleta domiciliar.

Após reclamar, o vendedor passou a usar os serviços da Pegaki, na qual o vendedor precisa ir até um ponto de coleta para poder encaminhar as encomendas.

"Só que tem um detalhe, tem pessoas que relatam que não tem ponto do Pegaki nas suas cidades e mesmo assim é colocado nessa modalidade. Então, eu estou em São Paulo, tenho um ponto a 500 metros da minha casa, para mim foi tranquilo. Mas pensando na realidade do Brasil, quem mora em cidade pequena, eles não têm ou o ponto é muito longe", questiona o vendedor.

GRUPOS DE VENDEDORES NO FACEBOOK

* [OFICIAL] Grupo de Vendedores Shopee Brasil (link)
* Vendedores Shopee Brasil (link)
* Vendedores Shopee Brasil 🇧🇷 Dicas, dúvidas, divulgação (link)

Cerca de 160 mil membros

Mercado brasileiro subestimado

Os problemas de logística são apontados como "erros" da entrada da Shopee no mercado brasileiro de marketplaces por especialistas ouvidos pelo Núcleo.  

PhD em Business Administration e especialista em logística e varejo, Eduardo Maróstica entende que o Brasil é um mercado com muitas particularidades, com diferenças regionais e que, para o negócio dar certo por aqui, é preciso "know-how de distribuição".

"No Brasil a gente ainda engatinha em termos de logística. Na minha avaliação, a Shopee subestimou o mercado brasileiro, o potencial do mercado e as características."
- Eduardo Maróstica, professor na FGV

Para o especialista, não bastar olhar apenas para o potencial de consumo, mas sim fidelizar uma base fiel de compradores. "Não é incomum empresas recuarem das suas operações por não conseguirem garantir as suas entregas que prometem. No México e na Colômbia a Shopee não teve sucesso."

Professor na FGV, Maróstica lembra do ingresso do Mercado Livre no mercado brasileiro. A empresa nasceu em 1999 na Argentina e, segundo ele, migrou gradativamente para o país vizinho. Hoje a empresa tem uma frota própria de aviões e de vans para otimizar a logística, observa.

"É um modelo completamente diferente. Ela já vem testando seu modelo há uma década, gradativamente, seu crescimento não foi uma coincidência. Ele é um dos frutos de um preparo."

Além do Mercado Livre, outras plataformas como Amazon, Magazine Luiza, B2W/Americanas também adotaram a frota própria de veículos para obter "vantagem competitiva" e reverter problemas na logística.

Frente a tantas reclamações e problemas, o uso dos Correios seria uma opção para contornar a questão logística e da política do reembolso antecipado, acrescenta Fernando Picasso, professor no Insper e doutor em administração.

"É preciso dar credibilidade para as duas pontas da cadeia –  clientes e vendedores – e não favorecer apenas um lado", disse ele.

A partir do momento em que a Shopee não dá respaldo (para os vendedores) isso não se sustenta a médio e longo prazo. A Shopee deveria tirar do próprio bolso e fazer essa devolução para os sellers também, que acabam deixados na mão."
- Fernando Picasso, professor do Insper

Na resposta enviada após a publicação da reportagem, a Shopee disse que "está comprometida em ajudar os empreendedores brasileiros a crescer e prosperar online por meio de nosso marketplace de comércio eletrônico.  À medida que crescem seus negócios, oferecemos mais opções de parceiros logísticos aos vendedores para otimizar a coleta e a entrega de produtos aos consumidores locais. Esses parceiros devem aderir estritamente aos nossos altos padrões de serviço”.

Reclamações também no Procon

Não são apenas os vendedores que se queixam do Shopee, mas também os consumidores.

Em apenas um ano, o Procon de São Paulo registrou um aumento de 500% em reclamações vindas de pessoas que compraram na plataforma. O dado é um termômetro que pode refletir tanto o crescimento da empresa no país quanto os problemas de logísticos.

De 205 registros em jul.2021, as reclamações de consumidores saltaram para 1.231 no mesmo mês deste ano.

Além disso, houve uma elevação de 627,5% nas queixas em agosto deste ano em comparação com o mesmo mês em 2021.

O levantamento, feito pelo Procon-SP a pedido do Núcleo, revela que a principal queixa vem da dificuldade na devolução de valores pagos e retenção de valores, com 2.641 reclamações entre julho de 2021 e agosto deste ano.

Na sequência vem a demora e a não entrega dos pedidos, com 2.339 registros durante este período. Por último, constam produtos entregues incompletos, diferente do pedido ou danificados com 648 registros em 13 meses.

Para infortúnio da empresa, a Shopee tem baixo índice de resolução das reclamações. O indicador considera todas as queixas – desconsiderando aquelas "infundadas" – e compara o que foi resolvido com o que não foi em até dez dias após a reclamação.

Apenas em agosto do ano passado o índice de resolução da Shopee ficou acima dos 70%, enquanto nos outros meses oscilou entre 50% a 60%. O esperado pelo Procon-SP é que seja maior que 83%, diz o diretor-executivo, Guilherme Farid.

Em dezembro do ano passado, a Shopee assinou um termo de compromisso com o Procon-SP para garantir os direitos dos consumidores que utilizam os serviços da empresa.

O compromisso voluntário garante agilidade para a remoção de anúncios que estejam em desacordo com a legislação e prevê canal de comunicação direto entre as instituições a fim de solucionar os problemas de consumidores que procuram o órgão de defesa para reclamar.

O acordo determina que consumidores que se arrependerem, que não receberem o produto ou que receberem o produto com defeito sejam reembolsados através do programa “Garantia Shopee” – programa oferecido gratuitamente pela empresa.

O que diz a Shopee

Até o fechamento da reportagem, a Shopee e a SEA – dona da empresa, em Cingapura –, não havia respondido às perguntas do Núcleo sobre as principais queixas feitas por vendedores associados à plataforma.

O primeiro contato do Núcleo foi em 30.ago.2022 e houve pedido de prorrogação pela assessoria de imprensa. O pedido foi acatado pelos editores, mas a assessoria não respondeu mais. O último pedido de comentários data de 9.set.2022.

A plataforma enviou seu posicionamento na manhã de segunda-feira, 19.set., um dia após a publicação da reportagem. O Núcleo publicou sua resposta na íntegra.

Em sua página Centro de Educação do Vendedor, a Shopee dá instruções do que fazer em determinados casos.

Questionamentos do Núcleo à Shopee Brasil

- A empresa está ciente de reclamações sobre o novo sistema de logística no Brasil. O que a empresa tem feito para melhorar o sistema?

- Os vendedores reclamam de mudança no sistema de entregas dos Correios para transportadores. Em alguns casos, eles acabam ficando sem opção para enviar os produtos, já que consta "indisponibilidade de frete". O que a Shopee tem feito para melhorar o serviço?

- Alguns vendedores especulam que o contrato da Shopee com os Correios vai acabar. Há alguma informação sobre isso?

- Os vendedores reclamam de extravio de produtos pelas transportadoras. O que tem sido feito para diminuir esse problema?

- Os vendedores também se queixam, em casos de devolução do produto, do reembolso antecipado, antes mesmo da mercadoria ser remetida pelo comprador. Há algum estudo para rever esse sistema e só garantir o reembolso só após a confirmação do recebimento da mercadoria pelo vendedor?

- Foi relatado por vendedores que a Shopee não mede peso para calcular custo frete, mas desconta dos vendedores suposto "excesso de peso". A empresa tem comentários sobre isso?

- Qual o percentual de falhas de entrega de mercadorias pela Shopee?

- Em caso de extravio, há reembolso para os vendedores e clientes?

Como fizemos isso

O jornalista Hygino Vasconcellos acompanhou por diversas semanas dois grandes grupos de vendedores no Facebook aos quais teve acesso, e entrou em contato com diversos vendedores que postaram reclamações.

Também foram feitas solicitações de dados ao Procon de São Paulo, e checamos menções às operações brasileiras nos balanços de resultados da SEA.

Reportagem Hygino Vasconcellos
Arte e gráfico Rodolfo Almeida
Edição Samira Menezes e Sérgio Spagnuolo

Texto atualizado às 14h32 de 19.set.2022 para incluir posicionamento enviado pela Shopee.

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