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Entenda a canetada do STF sobre o Marco Civil da Internet

STF determina que redes sociais podem sim ser responsabilizadas por conteúdos ilegais e exige que empresas tenham representante no Brasil

Entenda a canetada do STF sobre o Marco Civil da Internet
Arte por Rodolfo Almeida/Núcleo Jornalismo

O Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu na última quinta-feira (26.jun.2025) que redes sociais e plataformas digitais podem ser responsabilizadas por conteúdos publicados por usuários em certas situações, ao declarar parte do artigo 19 do Marco Civil da Internet inconstitucional por 8 votos a 3.

O artigo 19 previa que as plataformas só poderiam ser responsabilizadas se descumprissem uma ordem judicial para remover conteúdos. Para os ministros, essa exigência compromete a proteção de direitos fundamentais e impede respostas rápidas a casos graves.

A decisão traz dois efeitos: um prático, ao mudar a relação entre empresas, usuários e o Judiciário; e outro simbólico, ao abrir um novo capítulo na regulação da internet no Brasil.

O que mudou?

Sob a versão original do artigo 19, as plataformas só deveriam retirar conteúdos mediante ordem judicial.

Agora, elas devem remover rapidamente materiais ilegais — como pornografia infantil, discurso de ódio e apologia ao crime — assim que notificadas extrajudicialmente, sem aguardar decisão do juiz. Mesmo que o Judiciário discorde da notificação, a exclusão precisa ocorrer.

Para crimes contra a honra — como insultos, calúnia e difamação —, o STF decidiu que provedores serão responsabilizados se não removerem o conteúdo após ordem judicial. Quando a publicação já tiver sido reconhecida como crime por decisão anterior e for replicada em outras plataformas, todos os provedores deverão excluir as postagens idênticas assim que forem notificados, seja por via judicial ou extrajudicial, sem necessidade de nova decisão.

Essa decisão é de repercussão geral, ou seja, serve como referência obrigatória para casos similares em todo o Brasil.

Representante no Brasil

O STF também decidiu que todas as plataformas digitais que operam no Brasil devem ter uma sede e um representante legal no país.

Esse representante, obrigatoriamente uma empresa brasileira, terá plenos poderes para responder à Justiça e aos órgãos públicos em nome da plataforma.

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Tá lembrado? Tanto o Telegram como o X/Twitter já enfrentaram problemas na Justiça brasileira e suspensões temporárias pela falta de representante no país.

As empresas deverão informar, de forma clara e acessível em seus sites, quem é esse representante e como contatá-lo. Essa mesma pessoa será responsável por prestar informações às autoridades sobre o funcionamento da plataforma, suas regras de moderação e o tratamento de denúncias.

Também caberá ao representante cuidar dos relatórios de transparência, monitorar riscos, supervisionar a gestão de dados dos usuários (quando houver) e controlar a veiculação de anúncios e conteúdos pagos.

A quem se aplica

O STF definiu que as mudanças no artigo 19 se aplicam às redes sociais, plataformas de conteúdo aberto e serviços digitais com interação pública, como Facebook, Instagram, X, YouTube e similares.

Por outro lado, a regra antiga continua valendo para provedores de e-mail, aplicativos de reuniões fechadas por vídeo ou voz e serviços de mensagens privadas, como WhatsApp e Telegram, desde que usados em ambientes restritos.

Nesses casos, só há responsabilidade se a plataforma descumprir uma ordem judicial para retirar o conteúdo. O objetivo é preservar a privacidade e a liberdade nas comunicações pessoais.

EXCEÇÃO. O STF também criou exceções específicas: quando se trata de anúncios pagos, conteúdos impulsionados ou publicações disseminadas por redes artificiais — como bots e robôs — a responsabilidade da plataforma é presumida.

Ou seja, se houver ilegalidade, a empresa responde automaticamente, sem necessidade de comprovar omissão ou esperar decisão da Justiça.

O que continua?

Como o artigo foi apenas parcialmente invalidado, a regra geral se mantém: as plataformas não são responsabilizadas automaticamente pelo conteúdo postado por terceiros, desde que cumpram ordens judiciais e não ignorem denúncias graves.

O STF reforçou que devem agir com agilidade, boa-fé e transparência, adotando procedimentos internos eficientes para evitar omissões.

Efeito prático

Com essa decisão, redes sociais, plataformas e big techs precisarão mudar a forma como atuam com moderação de conteúdo no Brasil. Essa mudança obriga as empresas a revisar suas políticas internas e a assumir maior responsabilidade pelo que circula nos feeds dos usuários brasileiros.

Embora algumas empresas possam ameaçar deixar o país para evitar os novos compromissos, essa possibilidade é difícil de mensurar com precisão, considerando que o Brasil conta com cerca de 144 milhões de usuários ativos em redes sociais, segundo dados de jan.2025.

Na prática, é possível esperar um aumento nas equipes de moderação dessas empresas. Isso, no entanto, não significa necessariamente a ampliação dos times no Brasil, já que a maioria terceiriza essa função para trabalhadores que realizam microtarefas, ganhando centavos para moderar centenas de publicações.

Efeito simbólico

Alguns setores apontam que o Supremo avançou sobre um papel que deveria caber ao Congresso: definir por lei as regras para a internet.

Para esses críticos, ao reinterpretar o artigo 19 e estabelecer novos critérios de responsabilidade para as plataformas digitais, o STF promoveu uma mudança relevante — porém controversa — por meio do Judiciário, em um tema estrutural de regulação da internet que, idealmente, deveria ser debatido e decidido pelo Legislativo.

Em seu voto, o ministro Nunes Marques, indicado pelo ex-presidente Jair Bolsonaro, defendeu que a responsabilidade civil na internet cabe, antes de tudo, a quem causou o dano — não à plataforma que hospedou o conteúdo. Segundo ele, o MCI já prevê situações em que as plataformas podem ser responsabilizadas, mas isso deve seguir os limites estabelecidos em lei. Para o ministro, qualquer mudança nesse modelo é tarefa do Congresso, não do Supremo.

Esse argumento já havia sido levantado por representantes da indústria e juristas na audiência pública de 2023 organizada pelo próprio Supremo, e por entidades como a Associação Brasileira de Internet (Abranet) e a Assesspro Nacional, que defenderam a manutenção da redação original do Marco Civil, ressaltando a importância de preservar o equilíbrio institucional entre os poderes.

Ao Estadão, um porta-voz da Meta declarou na sexta-feira (27.jun.2025) que a mudança no artigo 19 “traz incertezas jurídicas e terá consequências para a liberdade de expressão, inovação e desenvolvimento econômico digital, aumentando significativamente o risco de fazer negócios no Brasil”.

Já o Google disse ao jornal que “nenhuma grande democracia no mundo jamais tentou implementar um regime de responsabilidade para plataformas digitais semelhante ao que foi sugerido até aqui no julgamento no STF”. Na União Europeia, a Lei de Serviços Digitais determina responsabilidades semelhantes, mas não idênticas, às recém-estabelecidas pelo Supremo.

GOVERNO LULA. Durante a audiência pública de 2023, o governo Lula, representado por ministérios e secretários, optou pela neutralidade.

Após a decisão do STF, porém, a Advocacia-Geral da União comemorou o resultado. “Não é possível admitir que provedores se eximam de qualquer responsabilidade por conteúdos ilícitos que, embora não sejam por eles criados, geram lucros com seu impulsionamento e violações de direitos fundamentais”, afirmou o ministro Jorge Messias.

Reportagem Sofia Schurig
Arte Rodolfo Almeida
Edição Alexandre Orrico

Texto atualizado às 18:23 de 30.jun.2025 para esclarecer que a flexibilização do artigo 19 no caso de crimes contra honra vale para alguns casos.

Conheça quem liderou essa pauta

Sofia Schurig

Sofia Schurig

Repórter com experiência na cobertura de direitos humanos, segurança de menores e extremismo online. É também pesquisadora na SaferNet Brasil e fellow do Pulitzer Center.

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