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Toda startup sonha em mudar o mundo. Poucas conseguem. A Uber é uma delas. Como bem sabem os passageiros que usam o serviço, o caminho para o destino é importante. O da Uber, como confirmaram os “Uber files” revelados na segunda-feira (11), foi bastante conturbado.

A tática da Uber já era conhecida: entrar agressivamente em novos mercados, desrespeitando tantas leis quanto fosse necessário, para mostrar o valor do serviço a passageiros e motoristas e, com o apoio efusivo da população, forçar o poder público a alterar a lei em seu favor.

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Não são novidades os artifícios desleais que a empresa empregava para atingir seus objetivos. Programas como o Heaven, que permitia aos funcionários da Uber acessar a localização de qualquer usuário em tempo real, ou o Greyball, que ocultava a operação dos carros da Uber de autoridades usando “cercas digitais” (geofencing), há muito foram reveladas.

Também já era notória a falta de escrúpulos de Travis Kalanick, o infame cofundador e CEO da Uber até 2017. Naquele ano, ele foi filmado discutindo com um motorista “parceiro” da empresa que reclamava da política de preços dinâmicos.

“Sabe de uma coisa? Algumas pessoas não gostam de assumir a responsabilidade por suas cagadas. Jogam a culpa na vida ou nos outros. Boa sorte”, disse Kalanick ao motorista, sem demonstrar um pingo de empatia, apenas para se desculpar publicamente dias depois e dizer que “precisava amadurecer”. (Àquela altura, o executivo tinha quase 40 anos de idade.)

Ainda assim, os Uber Files trazem novas revelações que ajudam a entender como a empresa passou de uma startup de carros pretos luxuosos para executivos mimados a um modal de transporte global.

São 124 mil documentos, incluindo apresentações, memorandos, e-mails e trocas de mensagens, do momento mais importante da história da Uber: sua expansão global com ambição monopolista, entre 2013 e 2017.

Foi nessa época que a startup californiana lançou o Uber X, sua modalidade popular, e desembarcou no Brasil e em vários países europeus e asiáticos com a ambição de se tornar um monopólio global.

O delator, o lobista irlandês Mark MacGann, se diz arrependido pelo papel que desempenhou no projeto expansionista da Uber.

“A abordagem da empresa nesses locais [onde chegava] era basicamente infringir a lei, mostrar como o serviço da Uber era fantástico e então mudar a lei”, disse MacGann ao The Guardian.

NOVIDADES

Apesar de muitos descalabros da Uber serem conhecidos há tempos — tanto que motivaram a queda de Kalanick, em 2017 —, há material novo ali no meio de tantos papéis digitais.

A presença da Uber era tão irresistível que políticos de todo o espectro não se furtavam de estabelecer relações com Kalanick, MacGann e outros asseclas quando a Uber decidia entrar num novo país.

Alguns, como Emmanuel Macron e Joe Biden, simpatizavam ou ajudaram a Uber a se estabelecer em seus países. São presidentes hoje, e na época já ocupavam cargos importantes — um era ministro da Economia da França, o outro, vice-presidente dos Estados Unidos.

Não que sirva de desculpa, mas a Uber era irresistível, dona de um charme concebido por toneladas de dinheiro de investidores de risco sendo queimado em subsídios insustentáveis.

Ser contra o moderno, o (suposto) progresso e ficar do lado dos taxistas? É compreensível, embora não sirva de desculpa, que tantos políticos poderosos tenham sido seduzidos pelo canto da sereia. Porém, os poucos que se opuseram ou colocaram dúvida a promessa da Uber também consta nos Uber Files para provar que uma dose de ceticismo sempre cai bem.

Um trecho já revelado demonstra bem a perversidade presente no projeto de domínio de Kalanick. Quando insuflou motoristas franceses da Uber a fazerem um protesto paralelo ao dos taxistas na capital Paris, outros executivos alertaram que o encontro poderia resultar em violência.

“Acho que vale a pena”, escreveu Kalanick em uma mensagem de texto. “Violência garante sucesso.”

Os documentos revelados por MacGann também dão um vislumbre do ambiente disfuncional da Uber daquela época, que, já se sabia, era movido a assédios dos mais diversos.

Quando chegou a Londres, logo após ser contratado, MacGann avisou um executivo de que estava atrasado. O executivo respondeu de volta dizendo que já sabia, pois estava acompanhando-o no Heaven, o modo “visão de Deus” que a Uber tinha para bisbilhotar os deslocamentos de qualquer usuário da plataforma em tempo real.

“Pareciam crianças brincando com uma tecnologia de vigilância poderosa”, conta agora o arrependido MacGann. “Já naquela época sentia em mim que aquela era uma empresa vigarista.”

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Novo modal

Há quem diga que a Uber inventou um novo modal de transporte, um que une a conveniência do carro particular com as vantagens de se livrar dos custos e dores de cabeça de se ter um. Outros defendem que a empresa reinventou o táxi, desta vez com menos regulação.

Qualquer que seja a tese, a Uber mudou o mundo: o aplicativo e os outros que tentam fazer frente a ele redesenharam a mobilidade nas grandes cidades.

Como dizem os gringos, este gênio já saiu da lâmpada, não tem como voltar atrás, ainda que a sustentabilidade do modelo de negócio ainda não tenha se provado (a Uber nunca deu lucro) e estudos apontem que serviços do tipo pioram o trânsito e ofuscam o que realmente poderia resolver o problema crônico dos congestionamentos nas grandes cidades — o transporte público.

Kalanick saiu da Uber em 2017, acuado por uma sucessão de escândalos. Ou melhor: foi saído, porque sua situação ficou insustentável. Desde então, a Uber mudou de rota sob o comando de Dara Khosrowshahi.

Ao comentar os Uber files, é essa a mensagem que os porta-vozes da empresa passam: admitem os erros passados, mas enfatizam que eles são isso, erros passados. A nova Uber é diferente. E é, não há como duvidar disso.

O problema é que a atual Uber só está onde está porque a velha Uber agiu do jeito que agiu.

Em 2019, quando a empresa abriu capital na NYSE, Kalanick, mesmo fora, tornou-se bilionário. A Uber, relembro, mudou o mundo à base da truculência, do lobby rasteiro, trapaceando. A humanidade convive hoje, para o bem e para o mal, com este legado.

Edição Sérgio Spagnuolo
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