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Embora o Telegram tenha se comprometido com a justiça brasileira em moderar conteúdo extremista no Brasil, na prática as coisas são um tanto diferentes. Grupos neonazistas brasileiros podem ser facilmente encontrados no próprio mecanismo de busca da plataforma, e, em muitos casos, sem qualquer necessidade de link de convite ou autorização dos administradores.

Tão preocupante quanto a permanência desses canais no ar é o nítido crescimento em quantidade que eles tiveram nos últimos anos, intensificando-se em 2020 e praticamente dobrando no início do período eleitoral em ago.22, segundo uma nova pesquisa da antropóloga Adriana Dias.

Durante monitoramento do Núcleo, entre out.22 e nov.22, foi possível entrar em pelo menos 46 desses canais ativos na plataforma, nos quais mensagens antissemitas, racistas, misóginas, com apologia ao nazismo e incentivo a atentados e tiroteios em escolas são enviadas diariamente.

[DISCLAIMER] Essa reportagem foi apurada e publicada antes de tomarmos conhecimento do atentado à escola em Aracruz (ES), em 25.nov.2022, por um assassino que usava uma suástica no braço. O timing foi pura coincidência.


É importante porque...

A permanência no Telegram de grupos de extrema-direita que incitam a violência e o ódio evidenciam mais uma vez a importância da moderação de conteúdo nas plataformas

Muitos dos canais neonazistas brasileiros monitorados pelo Núcleo são frequentados por jovens, que mandam até áudio com discurso extremista, sem medo de uma possível identificação

Até o momento, o Telegram não teve uma grande ação coordenada contra grupos neonazistas brasileiros, ao contrário do seu posicionamento contra canais de extremismo islâmico


Esse número, porém, é bem maior, considerando que há grupos fechados aos quais a reportagem não teve acesso porque o administrador não deu a autorização para participar.

Apenas um único canal, com 1.700 inscritos, foi derrubado pelo Telegram durante a apuração. Hoje consta a mensagem de que o grupo “violou as leis locais”, mas não cita quais especificamente.

Pop-up que aparece ao tentar entrar no canal bloqueado. Captura de tela: monitoramento do Núcleo

Com até 500 participantes, um desses grupos acompanhados pela reportagem está ativo desde 2016. Canais com até 11 mil inscritos também foram identificados, mas são minoria. Entre os 46 canais monitorados:

  • 1 foi criado em 2016 e 1 em 2019;
  • 11 foram criados em 2020;
  • 14 surgiram em 2021;
  • 20 novos apareceram em 2022, sendo 11 deles após ago.22.

Em sua pesquisa sobre células neonazistas na internet, Dias, que é pesquisadora da FioCruz e doutora em antropologia pela Unicamp, chegou a identificar 40 canais criados no Telegram em um mesmo dia. Segundo suas análises, eles dobraram de tamanho em um ano, passando de 530 em out.21 para 1.117 em nov.22.

Para ela, um dos motivos para o crescimento dos canais é justamente a voz omissa da plataforma.

“O Telegram apaga os dados dos canais. Então, até mesmo se uma investigação começar, ele pode falar às autoridades que não tem mais os dados”
- Adriana Dias, pesquisadora da FioCruz e doutora em antropologia pela Unicamp, especialista em extrema-direita no Brasil
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“Matar”, “degolar”, “fuzilar”

Entre os canais monitorados, o Núcleo identificou muitas mensagens enviadas por membros falando em “matar”, “degolar” e “fuzilar” judeus, negros e outras minorias religiosas ou étnicas — seguindo o mesmo padrão observado em canais bolsonaristas que fomentam o ódio aos petistas.

O preconceito é uma linha semelhante entre os grupos monitorados, cujos formatos variam entre chat fechado, onde só os administradores podem enviar mensagens, ou chat aberto, no qual todos os inscritos podem mandar mensagens.

Canal neonazista compartilhando manual supremacista em canal com 243 inscritos. Captura de tela: monitoramento do Núcleo

Mensagens violentas direcionadas a mulheres pertencentes a minorias (religiosa, sexual ou regional) também são frequentes, assim como o compartilhamento de teorias nazistas e de manifestos terroristas.

Ao menos 5 canais monitorados compartilharam o manifesto do terrorista de Christchurch (Nova Zelândia), traduzido para o português, além de vídeos o colocando em uma posição de “mártir” do movimento. E, em 1 deles, havia inclusive tutorial de como fazer uma bomba caseira.

Neonazistas saúdam Brenton Tarrant, terrorista que assassinou 51 pessoas em uma mesquita em Christchurch, Nova Zelândia. Captura de tela: monitoramento do Núcleo

O uso do Telegram como canal para divulgação de manifestos de supremacistas brancos é um dos fatores para o crescimento de grupos extremistas na plataforma, como apontou um relatório da Hope Not Hate em 2020.

Entre um link e outro compartilhado, com imagens e vídeos de outras redes, como TikTok, muitos participantes dos canais neonazistas brasileiros se identificam como bolsonaristas ou cristãos “lutando pelo país” e divulgando postagens com temas de defesa à família, liberdade e valores tradicionais, fomentando narrativas de que “elites judaicas” estariam “perseguindo cristãos”.

A legenda da imagem diz “Apoiador do Brasil 🇧🇷”. Captura de tela: monitoramento do Núcleo

Em outros, comentários sobre a vida escolar deixam a entender que os membros são menores de idade. Até mensagem de áudio chegou a ser enviada em um desses canais, deixando claro a despreocupação por parte dos membros em relação a uma possível identificação.

No áudio em questão, um jovem de idade não identificada fala como “seria uma boa” realizar um tiroteio durante o recreio na sua escola. Em seguida, reclama sobre “não ter um branco” em seu colégio.

Usuários fazem comentários antissemitas em canal neonazista. Captura de tela: monitoramento do Núcleo

Facilidade para encontrar

A divulgação desses canais neonazistas acontece por listas de transmissão. O método consiste no uso do mecanismo de busca nativa da rede, fazendo o usuário pular de canal em canal até chegar ao grupo final.

Nele, o usuário encontra as listas com centenas e centenas de canais neonazistas, onde alguns são separados por atividade e outros por número de usuários.

Um desses grupos que funcionava como canal de divulgação através de listas de transmissão era o canal monitorado pelo Núcleo, identificado pelo próprio mecanismo de busca do Telegram, e único excluído pela plataforma. Nele, canais neonazistas e antissemitas eram listados por categorias.

Dias após o canal em questão ser derrubado, verificamos um canal ativo de “backup” feito pelos administradores.

Nesse canal de backup consta um arquivo de todas as listas enviadas no grupo anterior. Ao que tudo indica, o canal ainda não foi identificado pelo próprio Telegram.

Descaso na moderação

A última ação do Telegram contra canais neonazistas ao redor do mundo foi em jan.21, duas semanas após a invasão de extremistas no Capitólio dos Estados Unidos.

O momento não foi coincidência: pouco tempo depois, a comissão parlamentar que investigou o caso descobriu que os líderes da insurreição usaram o Telegram e outras redes alternativas, como a Gab, para planejar e coordenar o ataque.

Até o momento, a empresa nunca teve uma grande ação coordenada contra grupos neonazistas, ao contrário do posicionamento que adota contra canais de extremismo islâmico.

Em nov.19, o Telegram derrubou 5 mil canais associados ao extremismo islâmico e grupos como o ISIS, a pedido da agência policial da União Europeia, a Europol.

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Entre as 9 empresas procuradas, o Telegram possuía o maior número de solicitações para derrubar conteúdo, segundo um comunicado da própria agência.

O Google Play Store conseguiu moderar mais conteúdo do que o próprio Telegram. Durante a apuração, entre os 46 canais, o Núcleo identificou mais de 10 canais bloqueados pelo Google, em comparação a apenas 1 pelo Telegram.

O bloqueio impede que os canais sejam acessados por aplicativos do Telegram baixados pela Google Play Store. Usuários também não conseguem visualizar mensagens encaminhadas desses canais bloqueados.

O Google não respondeu ao Núcleo como consegue localizar os canais e também não disse se alerta ou não o Telegram sobre os grupos identificados. Por meio de sua assessoria de comunicação, a empresa disse que não comentaria o caso.

Contudo, os canais bloqueados pela Play Store continuam ativos pela versão para computador e em aplicativos baixados pela Apple Store ou os APKs, aplicativos modificados.

O Núcleo identificou ao menos 4 canais que, em suas mensagens fixadas, ensinam usuários como “burlar a censura” da Google ao usar o Telegram de uma forma diferente.

O Núcleo tentou contato com o Telegram através de seu robô de contato para a imprensa, mas não obteve resposta.

SAIBA MAIS - Um problema mundial

O aumento em canais neonazistas ocorre até mesmo em países com fortes leis para impedir a proliferação da extrema direita online, indicando que potencialmente o problema está na própria plataforma, não apenas nas legislações locais.

Na Alemanha, por exemplo, aplicativos como o Telegram são fortemente moderados para conter o avanço desses canais. O jornal britânico The Guardian chegou a chamar as legislações alemãs de “uma das duras” contra o discurso de ódio ao redor do mundo.

Entretanto, em dez.21, a polícia alemã descobriu um esquema para assassinar Michael Kretschemer, primeiro-ministro do estado alemão da Saxônia.

O atentado estaria sendo orquestrado em um canal neonazista alemão no Telegram, com influência de células americanas. A repercussão fez com que o Ministério da Justiça alemão considerasse banir o aplicativo do país.

Recentemente, em 17.out, a justiça alemã multou o Telegram em 5 milhões de Euros por não cumprir a legislação local. Autoridades afirmam que a plataforma não estabeleceu uma forma de denunciar conteúdo ilegal e não nomeou uma entidade na Alemanha para receber comunicações do governo.

Como fizemos isso

O Núcleo identificou um canal neonazista a partir do mecanismo de busca no Telegram. Através dele conseguimos entrar em outros 45 canais, optando por aqueles com mais de 100 inscritos e com discursos mais extremistas.

Para compreender melhor o escopo do ecossistema, por duas semanas observamos os diálogos e narrativas compartilhados pelos neonazistas, entre out.22 e nov.22. O Núcleo fez o download do histórico de mensagens dos 46 canais monitorados, e buscou palavras-chave para começar a apuração.

Reportagem Sofia Schurig
Arte Rodolfo Almeida
Edição Sérgio Spagnuolo

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