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Em abr.2022, a União Europeia tocou o sino da linha de chegada. O bloco se tornou a primeira entidade governamental a aprovar uma legislação para regular as redes sociais e plataformas digitais.
O processo de aprovação do Digital Services Act (algo como Lei de Serviços Digitais) foi acompanhado de perto por acadêmicos, pesquisadores, parlamentares e jornalistas ao redor do mundo. Não só por ser o primeiro, mas por tentar oferecer soluções razoáveis e proporcionais para questões de alta complexidade.
É possível que o DSA seja o chute inicial para inspirar processos regulatórios em outros países que têm a regulação de redes sociais como pauta quente na mesa.
É o que pode acontecer com o Brasil, segundo sinalizações dadas pelo novo governo ainda durante o processo de transição.
A paralisação do projeto de lei 2630/2020, que ficou conhecido popularmente como PL da Fake News, deixou o assunto como pendência para o novo governo. Membros do grupo de transição apontaram que uma regulação de redes deveria (ou poderia) acontecer nas linhas do que fez a Europa.
É ✷ importante ✷ porque...
DSA deve ser referência principal para futura regulação de redes sociais no Brasil
Resultados do DSA devem indicar possíveis desdobramentos de uma regulação semelhante no Brasil
Em entrevista ao site Jota em nov.2022, o ex-ministro das Comunicações Paulo Bernardo, que chefiou os trabalhos do grupo técnico de Comunicações na transição e não tem cargo no governo, falou da Europa como uma referência.
"Não precisamos inventar coisas, já tem experiências de regulação que foram feitas e trabalho que foi executado e que podemos nos basear", disse Bernardo.
MUDANÇA DE PARADIGMAS
Em dez.2020, a Comissão Europeia, órgão da UE que produz e propõe leis, apresentou dois textos com o objetivo de regular serviços digitais no bloco econômico: o Digital Services Act (DSA) e o Digital Markets Act (DMA).
Depois de mais de um ano de discussão, foram selados acordos sobre os textos em abr.2022 e mar.2022, respectivamente. O primeiro (DSA) trata diretamente de redes sociais e o segundo (DMA) tem uma ótica voltada para questões concorrenciais e de mercado.
→ O DSA diz respeito a empresas intermediárias e plataformas. Isso inclui varejo online, redes sociais, plataformas de distribuição de conteúdo, lojas de aplicativo e plataformas de viagem e hospedagem.
💡foco em como plataformas agem sobre conteúdos.
→ O DMA propõe regras para plataformas online que funcionam como 'gatekeepers'. Isso significa que são plataformas com uma função sistêmica no mercado interno e que operam como gargalos entre negócios e consumidores para importantes serviços digitais.
💡foco é em nivelar mercado e competição justa.
O DSA representa uma mudança de paradigmas sobre regulação de plataformas, explica Bruna Santos, ativista da Coalizão Direitos na rede e pesquisadora visitante no Berlim Social Science Center.
O DSA tem esse interesse de trazer um novo rol de obrigações para as plataformas ao mesmo tempo em que traz um modelo que não seja tão disruptivo nem para o mercado digital e muito menos para inovação
- Bruna Santos, pesquisadora do Berlim Social Science Center
Embora outros países – inclusive o Brasil – já discutam temas que estão no escopo do DSA, considera-se que a União Europeia "venceu a corrida regulatória" por ter sido o primeiro bloco a chegar ao fim do processo de debate e aprovar um texto.
Mas não é só pelo pioneirismo que o DSA é observado mundo afora.
"Ele surge de uma espécie de esforço da UE de entender o que é o mercado digital e quem são os atores, quais atores atuam em quais camadas", explicou Santos ao Núcleo.
"E também a partir de uma humildade do bloco de compreender que regras que sejam estabelecidas de cima para baixo sem entender as especificidades ou nuances dos intermediários são regras que poderiam ter algum problema de implementação".
Alguns aspectos que tornam a legislação singular:
- Reconhecimento de que, embora esses atores (as empresas) precisem ser regulados, essa regulação deve ser assimétrica e definida por padrões objetivos;
- Abordagem assimétrica baseada em risco, tamanho e escala das plataformas → essa regulação assimétrica permite ao DSA focar em grandes plataformas e isentar empresas menores de algumas regras que poderiam ser onerosas e que poderiam afetar a competitividade no mercado;
- Compreensão de que a regulação não deve afetar a inovação;
- Processo de elaboração marcado por consultas multisetoriais internacionais;
- Preservação das regras de responsabilidade de intermediários e trabalho a partir destes marcos para estabelecer regras específicas com base em proporcionalidade (risco x eventuais danos).
Aprofunde-se: O que o DSA propõe?
Sob o DSA, plataformas terão de agir mais rápido para remover conteúdos ilegais, incluindo promoção e venda de produtos ilícitos, terão de explicar a usuários e pesquisadores como seus algoritmos funcionam e terão de tomar ações mais duras para combater a disseminação de desinformação.
Se não cumprirem com o acordo, as empresas poderão receber multas que podem chegar a 6% de sua receita anual.
Principais pontos do DSA:
- Medidas para combater conteúdo, serviços ou produtos ilegais online, como um mecanismo que permitirá a usuários "sinalizar" esse conteúdo e estabelecerá um regime em que plataformas podem cooperar com esses "sinalizadores confiáveis"
- Estabelece obrigações sobre a rastreabilidade de vendedores e compradores em marketplaces online, também visando auxiliar na identificação do comércio de produtos ilícitos
- Criação de salvaguardas efetivas para usuários, incluindo a possibilidade de apelar ou recorrer de decisões de moderação de conteúdo das plataformas
- Banimento de publicidade direcionada nas plataformas para crianças ou quando usam segmentação de dados pessoais como etnia, posição política e orientação sexual
- Medidas de transparência para plataformas em uma variedade de temas, inclusive algoritmos de recomendação
- Estabelece obrigações para que plataformas muito grandes e buscadores muito grandes evitem o uso malicioso de seus sistemas tomando ações com base em risco e conduzindo auditorias independentes do seus sistemas de gerenciamento de risco
- Garantir que pesquisadores tenham acesso aos principais dados das maiores plataformas e buscadores para entender como riscos online evoluem
- Implementação de uma estrutura de fiscalização que dê conta da complexidade do ambiente digital: os países europeus terão papel primordial, apoiados por um novo Conselho Europeu para Serviços Digitais. No caso de plataformas muito grandes, a supervisão e aplicação de regras e sanções ficará a cargo da Comissão Europeia.
APROFUNDE-SE: O CASO AUSTRALIANO
Em fev.2021, enquanto a UE discutia o DSA, a Austrália aprovava a primeira peça de regulação de mídia com foco na remuneração de veículos jornalísticos por conteúdo veiculado pelas plataformas de redes sociais. Desde então, a Austrália tem discutido, separadamente, outros pontos de regulação de mídia. Em nov.2021, o governo australiano abriu um inquérito para investigar as práticas das empresas e o "conteúdo tóxico" presente nas plataformas.
PROCESSO POLÍTICO
Antes da apresentação da proposta, a Comissão Europeia (o órgão da UE que propõe leis) ouviu atores do setor privado, usuários, organizações da sociedade civil, autoridades, acadêmicos, especialistas técnicos, organizações internacionais e o público em geral. Estes grupos também participaram em outros passos consultivos.
IMPLICAÇÃO GLOBAL E PARA O BRASIL
Embora a legislação só se aplique para a operação das big techs dentro da União Europeia, é provável um reflexo global. Isso porque, em vez de operar sob regras diferentes para cada região, as empresas podem optar por se adequar a um único regime e implementá-lo ao resto do mundo.
Mas fora das empresas, há indicações — como as que foram dadas pelo governo de transição aqui no Brasil – de que outros países podem se inspirar nas leis da UE. Na avaliação de Santos, há uma tendência de que o DSA vire referência.
"Não só a Europa ganha essa corrida regulatória, mas, acima de tudo, ela consegue amarrar de maneira bastante consistente e coesa várias discussões que estavam presentes em vários lugares do mundo", disse a pesquisadora.
O PL 2630, conhecido como PL das Fake News, abarcava vários dos temas que aparecem no DSA, como relatórios de transparência, constituição de representantes legais e canais de informação sobre moderação de conteúdo. Esses debates que avançaram durante a tramitação do PL 2630 poderiam ser reaproveitados para pensar uma regulação de redes no novo governo, avalia a pesquisadora.
Conforme reportado pelo Núcleo, o governo tem demonstrado que qualquer ação na seara de redes sociais será interministerial, envolvendo principalmente Secom, que agora abarca a recém-criada Secretaria de Políticas Digitais, Ministério da Justiça e Advocacia-Geral da União, sob a qual ficou a nova Procuradoria de Defesa da Democracia.
Há inspiração a ser tirada do DSA, mas transpor uma legislação complexa para um país complexo como Brasil exigiria adaptações, disse Santos, acrescentando que já há sinalizações positivas.
"A gente está tentando transpor uma regra feita por um bloco de países e tentando colocar isso para o escopo de um país como o nosso. Uma adaptação necessária e que talvez a gente já tenha até pensado com a criação desta nova secretaria na Secom é justamente ter essa espécie de coordenador de serviço digital ou uma instância no governo federal que é capaz de acompanhar o provimento de serviços digitais para usuários no Brasil".
Ela menciona que o Brasil já possui uma estrutura interessante que permite a colaboração entre diferentes atores como Cade, Senacon e Ministério da Justiça, mas que o novo governo aponta para um cenário mais amplo de cooperação amarrando novos atores como Secom e AGU.
Para Santos, a grande mensagem do DSA é: "criem instâncias que sejam capazes de supervisionar o provimento de serviços e a conformidade desses serviços com as regras que vocês têm".
No Brasil, na ausência de um órgão que faça isso, essa atuação ficou a cargo do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) durante as eleições e com o Supremo Tribunal Federal (STF).