Ação do governo sobre plataformas utiliza conceitos que sequer existem no Brasil

Portaria do Ministério da Justiça também delega a órgão do Executivo poder de definir o que é ilícito ou não, com riscos à liberdade de expressão

A portaria do Ministério da Justiça publicada nesta quinta-feira (13.abr.2023), com medidas administrativas para prevenir a disseminação de posts violentos em redes sociais, faz referência a conceitos que não existem na legislação ou no marco jurídico brasileiros.

Como o governo quer conter conteúdos violentos nas redes
Ministério da Justiça criou uma série de medidas para tentar prevenir a disseminação de posts violentos

No artigo 2, a portaria estabelece que a Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon) deverá instaurar processo administrativo para apurar e responsabilizar plataformas de rede social pelo "eventual descumprimento do dever geral de segurança e de cuidado em relação à propagação de conteúdos ilícitos, danosos e nocivos, referentes a conteúdos que incentivem ataques contra ambiente escolar ou façam apologia e incitação a esses crimes ou a seus perpetradores."

Mesmo na Europa, que utiliza estes conceitos no Digital Services Act, a definição destes e do que seria um risco sistêmico – outro termo que aparece na portaria do MJ – ainda estão sendo debatidas.

O Núcleo está apurando junto a especialistas a aplicação das leis que protegem consumidores e crianças e adolescentes aplicadas diretamente à regulação de redes sociais, e que podem conflitar com o Marco Civil da Internet.

"São conceitos bastante abertos que vieram na portaria e de uma forma bastante curiosa, seguindo a terminologia do que está na proposta do governo para o PL 2630", disse Heloisa Massaro, diretora do InternetLab ao Núcleo.

A noção de dever de cuidado, por exemplo, aparece nas sugestões enviadas pelo Executivo para incorporação ao projeto de lei 2630.

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SOBRE RISCO SISTÊMICO
A discussão do que é risco sistêmico já existe em alguns países, mas ainda assim é ampla. "A sua definição ainda é um assunto bastante complexo, que envolve a multidisciplinaridade entre tecnologia, direito e sociologia", disse ao Núcleo Luiza Himmelstein Moreira Leite, advogada sócia do escritório SBAC Advogados, especialistas em assessoramento de empresas de tecnologia.

"Em uma tentativa, podemos dizer que os riscos sistêmicos podem ser entendidos como problemas ou "bugs" que podem gerar a divulgação e disseminação de conteúdos ilegais e/ou que firam direitos fundamentais nas plataformas". Segundo a advogada, tais riscos podem ser decorrentes de:

- ações de usuários que burlem mecanismos ou protocolos já existentes que visem moderar conteúdos considerados indevidos;
- erros decorrentes da própria tecnologia utilizada pela plataforma.

Na avaliação de Massaro, é extremamente preocupante e arriscado que um órgão do Executivo assuma o controle sobre a liberdade de expressão, como propõe a portaria. E cria-se um precedente perigoso para que órgãos de governo fiquem encarregados de definir o que é ilícito ou não.

"Não é uma agência regulatória – é um órgão dentro do Ministério da Justiça que recebe o poder de analisar se as plataformas estariam cumprindo um suposto dever de segurança e cuidado sem definir isso e sem definir o que são esses conteúdos ilícitos danosos ou nocivos", disse a diretora.

CONFLITO COM ART. 19. A portaria do MJ se vale de dois caminhos:

  • Algo semelhante ao formato de notice and take down, que estabelece que a plataforma deve remover o conteúdo após uma notificação enviada por "autoridades competentes";
  • Impõe uma expectativa de monitoramento proativo pelas plataformas com uma moderação de conteúdo preventiva mais rígida.

"Estes dois caminhos, da forma proposta, podem levar a um conflito com os termos do artigo 19 do MCI que determina que é função do Judiciário efetuar a análise sobre potenciais conteúdos lesivos sem prejuízo do que está disposto nos Termos de Uso e das Políticas de Privacidade das plataformas", disse ao Núcleo a advogada Thays Bertoncini, advogada e sócia da Lee, Brock, Camargo Advogados.

Na avaliação de Bertoncini, essa expectativa de monitoramento lançada sobre as plataformas é problemática.

"Além de ser inviável fazer uma varredura de conteúdos – dentre a imensidão de publicações que são inseridas, alteradas e removidas na rede diariamente e a todo instante – seria igualmente temerário impor aos mesmos um dever de fiscalização e de eventual órgão censor", explicou.

Reportagem Laís Martins
Edição Sérgio Spagnuolo

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