Após demissões e cortes de custos, Google prepara evento de jornalismo em resort de luxo em SP

Evento acontece em meio a incertezas sobre a continuidade do apoio das Big Tech para organizações jornalísticas
Após demissões e cortes de custos, Google prepara evento de jornalismo em resort de luxo em SP
Arte: Rodolfo Almeida/Núcleo
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Linha Fina é uma coluna de opinião sobre mídia e jornalismo

Em meio a incertezas sobre a continuidade do apoio das Big Tech para organizações jornalísticas, o Google vai patrocinar, em mai.2023, um evento para jornalistas em um resort de golfe no interior de São Paulo.

O evento patrocinado pelo Google, chamado Newsgeist, é realizado há vários anos, em diferentes localidades, e tem como foco principal o debate sobre produtos de tecnologia, políticas públicas e o futuro do jornalismo. Durante a pandemia, o evento foi online.

A Fundação Knight, uma organização norte-americana que possui diversos projetos de fomento ao jornalismo, também é patrocinadora do projeto.

Neste ano, a edição acontecerá em um hotel na cidade de Itu, o Novotel Itu Golf & Resort, a cerca de 90km de São Paulo, com diárias a partir de R$1.100, segundo o Booking.com.

[Atualizado em 5.abr.2023] Organizações convidadas do evento podem pagar metade desse valor.

Alguns representantes de veículos que irão ao evento – muitos deles organizações pequenas, de nicho –  terão que pagar por suas próprias diárias e pelo transporte, com algumas exceções.

A lista de participantes, em geral, é bem seleta, algo que a própria organização faz questão de salientar.

"Operamos sobre a premissa de que se você fizer curadoria de pessoas ótimas, elas trarão os conteúdos mais perspicazes com elas", segundo o site. "É por isso que planejamos cuidadosamente a lista de participantes de cada evento Newsgeist."

Não entrei em contato com o Google para este artigo. Não há acusações, a empresa não está fazendo nada ilegal ou obscuro e eventos como esse tendem a ter resultados positivos para quem participa.

Eu mesmo participei presencialmente da edição de 2017, quando foi realizado na Faap, em São Paulo. Foi interessante e proveitoso, e alguns dos bons contatos no setor de mídia que eu tenho foram forjados nessa época.

Mas esse tipo de evento, fechado e enigmático, também nos mostra como as empresas de tecnologia passaram a se embrenhar no meio jornalístico de uma maneira muito particular e profunda, algumas vezes de forma preocupante, mesmo que as intenções dos profissionais do lado rico sejam boas.

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Google e Facebook (ou Alphabet e Meta, se preferir) são particularmente ativos no financiamento de projetos de jornalismo no Brasil há quase uma década, à medida que foram acumulando cada vez maior fatia do mercado publicitário, abocanhando receitas de anúncios que antes iam para veículos jornalísticos. Mais recentemente, a ByteDance (dona do TikTok) também passou a contribuir pesadamente com redações no Brasil, especialmente com checagem de informações que ajudam a impor suas políticas de moderação. Spotify e Twitter também têm ou tiveram projetos com veículos jornalísticos. 

Se por um lado trouxeram recursos muito bem-vindos, que ajudam a pagar salários de redações, a desenvolver produtos e capacidades e a financiar operações, por outro criam uma sombra de quase dependência de diversas organizações, financiando mentorias, treinamentos, eventos e até desenvolvimento de software.

Nenhum outro setor jorra tanto dinheiro no jornalismo quanto Big Tech nos últimos anos. Afinal, o dinheiro tem que vir de algum lugar.

Desde 2018 o Google já deu dinheiro para organizações em metade dos países do mundo, num total de US$300 milhões (na faixa de R$1,5 bi na cotação atual). Parece muito até você lembrar que o faturamento somado da empresa no quinquênio 2018-2022 superou US$1 trilhão.

[DISCLAIMER] O próprio Núcleo já recebeu, desde 2020, três grants de Google (2) e Meta (1) (dois deles intermediados por uma organização independente), e participou como parceiro de outros veículos em outros projetos por essas empresas financiados – totalizando algo como R$1 a cada R$3 que arrecadamos nos últimos três anos.

Não é hipocrisia. Nosso entendimento é que corporações gigantescas que faturam dezenas, às vezes centenas, de bilhões de dólares por ano têm o dever moral de ajudar a financiar jornalismo sério – até porque suas plataformas são corriqueiramente usadas como ferramentas para minar a democracia.

O fato de termos recebido tais recursos nunca mudou nossa independência completa em relação às Big Tech. Pelo contrário, nos fez reforçar nossa vigilância. Mas isso gerou, também, muitos questionamentos (justos, diga-se) por parte de pessoas preocupadas de que os vínculos de jornalismo e Big Tech estejam indo longe demais.

Grandes empresas de tecnologia têm enfrentado turbulências desde o ano passado, especialmente por conta de avaliações negativas do cenário macroecônomico mundial em meio a significantes aumentos de gastos nos últimos tempos, resultando na demissão de centenas de milhares de trabalhadores após anos de bonança.

Essas crises levaram muitas organizações de jornalismo, que lutam rotineiramente para fechar as contas (tipo o Núcleo), a ter dúvidas de que o apoio das Big Tech ao jornalismo continuará – e, se continuar, como vai ser. Se o Google, que faturou U$280 bilhões em 2022, tá sem grana a ponto de cortar os MacBook Pro de seus funcionários, o que sobra para o jornalismo?

Eventos como o Newsgeist são ótimos para promover desenvolvimento de tecnologias, novas ideias, parcerias e contatos. Mas de certa forma, em meio a conversas sobre inteligência artificial e novos produtos em um resort de golfe, eles também ajudam a distanciar da realidade mais imediata que temos: como manter nossas iniciativas com as luzes acesas agora, no curto prazo?

Em 2018 conheci uma jornalista norte-americana que veio ao Brasil a convite de uma organização daqui. Eu a encontrei logo após sua visita à sede do Google no Brasil, na Av. Faria Lima, em um dos prédios com o metro quadrado mais caro da América Latina.

Nunca vou esquecer o que ela disse pra mim: "O escritório do Google é muito bonito mesmo. Talvez se eles se desfizessem do estúdio de música e de apenas uma das nove cozinhas já daria pra financiar boa parte do jornalismo brasileiro por alguns anos".

Em tempo: o Núcleo não foi convidado para o Newsgeist neste ano, embora – após sugestão de colegas convidados – tenhamos solicitado um convite, ainda sem resposta. Depois desta reflexão, creio o convite não virá e, se viesse, não seria aceito – é no fim de semana do dia das mães.

Edição Alexandre Orrico

Linha Fina é uma editoria de opinião do Núcleo

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