As três ameaças ao Google

O Google nunca enfrentou concorrência séria. Agora, de uma vez só, três ameaças reais convergiram ao mesmo tempo e emparedaram a empresa. Há saída?

A história do Google é daquelas raras em que uma boa ideia é executada de maneira brilhante na hora certa. O buscador web do Google, lançado ao público em 1997, desencadeou uma revolução.

Aquele acerto nos primórdios da web comercial serviu de fundação ao surgimento de um império, expandido de maneira implacável nas décadas seguintes.

O Google e suas ambições cresceram tanto que a empresa virou um conglomerado, a Alphabet, a fim de comportar seus famosos “moonshots”, o tipo de aposta que somente empresas acostumadas ao sucesso — e que lucram consistentemente centenas de bilhões de dólares por ano —são capazes de fazer.

Hoje, as ofertas do Google vão muito além da busca na web: publicidade segmentada, softwares de produtividade, sistema operacional de celular, gadgest, computação em nuvem, inteligência artificial; e pesquisa ou já pesquisou ideias saídas da ficção científica, como carros autônomos, internet via balões, a vida eterna.

Apesar disso, na hora de fazer dinheiro o Google ainda é um mágico de um truque só: o da publicidade segmentada. Como qualquer administrador lhe dirá, concentrar todos os seus ovos numa cesta só é um risco existencial contínuo.

É nesse contexto que o Google, pela primeira vez, enfrenta uma ameaça séria ao seu império. Uma não; três.

A ameaça da concorrência

A celeridade com que o Google preparou e apresentou o Bard no final de janeiro, sua resposta ao fenômeno ChatGPT, da OpenAI, foi reveladora.

O ChatGPT pode até se provar apenas uma moda passageira daqui a alguns meses, mas hoje é tido como o futuro, o que torna ameaça bastante real: trata-se do produto digital que mais rápido atingiu 100 milhões de usuários (em apenas dois meses) e, em paralelo, está chegando às pessoas de outras formas, em produtos de parceiros diversos, alguns de peso como a Microsoft e a Snap.

O ChatGPT age como toda boa disrupção: mudando o campo de batalha. É difícil superar o Google no ato de devolver dez links relevantes e alguns anúncios numa página web após uma pesquisa. O ChatGPT troca esse paradigma por uma conversa, uma espécie de WhatsApp em que seu interlocutor é uma inteligência artificial em overdose após consumir boa parte do conhecimento já produzido pela humanidade — até meados de 2021, pelo menos.

Esse novo campo de batalha é inóspito ao Google. Não é trivial inserir anúncios nesse paradigma. Para piorar, gerar uma conversa por IA é dez vezes mais caro do que devolver aqueles dez links numa página web.

O Google tem o trunfo de ser, hoje, o padrão da busca por conhecimento na internet. Se aproveitar essa vantagem e colocar uma IA boa o bastante na frente do google.com, talvez consiga atropelar a OpenAI. No entanto, a OpenAI está aproveitando bem o momento, numa corrida alucinada para superar a vantagem de incumbente do Google.

O jogo estão tão aberto que os dois cofundadores do Google, Larry Page e Sergey Brin, retornaram ao dia a dia da empresa, três anos após deixarem as chaves da casa na mão do atual CEO, Sundar Pichai, para curtirem sua fortuna em ilhas paradisíacas afastadas de tudo e de todos.

Como disse Satya Nadella, CEO da Microsoft, a principal financiadora da OpenAI, o objetivo no momento é tirar o Google para dançar.

A OpenAI e a Microsoft conseguiram fazer o Google não só dançar, mas tropeçar nos próprios pés: a apresentação apressada do Bard foi um fiasco. No dia seguinte, US$ 100 bilhões evaporaram do valor de mercado da Alphabet/Google.

A ameaça da regulação

Semana sim, semana também, alguém resolve processar o Google por qualquer motivo — a maioria deles, justificada —, mas a notícia do final de janeiro é diferente.

O processo movido pelo Departamento de Justiça (DoJ, na sigla em inglês) dos Estados Unidos e oito estados norte-americanos mira no coração do Google: o negócio multibilionário de publicidade.

Ao contrário de outros processos antitruste contra a big tech aventados ou levados à Justiça nos EUA, esse não requer malabarismo jurídico para colar: é uma acusação de monopólio tradicional, puro, do mesmo tipo que motivou o Sherman Act de 1890.

Os procuradores norte-americanos acusam o Google de, nas últimas décadas, ter dominado o setor de publicidade digital comprando rivais como se não houvesse amanhã e se aproveitar desse domínio para elevar preços aos consumidores.

O DoJ e os oito estados querem desmembrar a máquina de publicidade do Google. Hoje, ela é completa: a empresa participa de todas as etapas da compra e venda de anúncios digitais nos EUA, o que lhe concede uma posição privilegiada e, não por acaso, uma fatia generosa do dinheiro que corre nas engrenagens da máquina.

Processos desse tipo se arrastam por anos e, mesmo que no fim não deem em nada, são uma gigantesca distração.

Na última vez que um caso de porte similar foi levado a cabo nos Estados Unidos, o monopólio do mercado de navegadores web pela Microsoft no final dos anos 1990, Bill Gates e companhia ficaram tão desnorteados que perderam o maior bonde da história da computação doméstica: a revolução dos smartphones.

A ameaça da opinião pública

Em maio de 2021, o Google apresentou um negócio chamado LaMDA, uma inteligência artificial que, no palco do Google I/O daquele ano, o evento anual da empresa para desenvolvedores, bateu um papo sobre Plutão e aviões de papel com um funcionário do Google.

Lembra alguém — ou melhor, alguma coisa? O LaMDA precedeu o ChatGPT em pelo menos um ano e meio, mas ninguém se lembra dele. Provavelmente porque o Google, mesmo já tendo a tecnologia, adotava até agora uma postura reticente, cuidadosa.

Esse cuidado não surgiu do nada. Desde 2016 o Google se posiciona como uma empresa de inteligência artificial. O LaMDA é só uma das tecnologias fascinantes que a empresa vem mostrando desde então, sem necessariamente liberá-las ao público.

Especula-se que os receios do Google derivem de outro Google I/O, o de 2018. Na ocasião, a empresa mostrou o Google Duplex, uma IA de áudio que telefonava a estabelecimentos comerciais, em nome do usuário, para realizar tarefas chatas, como reservar uma mesa em um restaurante.

O Duplex não se identificava como artificial. Mais que isso, a voz sintética adotava trejeitos humanos, como respiração e sinais de hesitação.

Há quem argumente que o Google cruzou uma linha perigosa ali. Foi a impressão que se teve da leitura da reação pública, que foi violenta. (Achei bem absurdo na época, e continuo achando.)

Aquele (agora ex-)engenheiro do Google, Blake Lemoine, que em meados de 2022 ganhou as manchetes ao afirmar que o LaMDA tinha consciência foi outro revés nas ambições da empresa em inteligência artificial. Para muita gente, o caso de Lemoine é a única associação existente entre “Google” e “IA”.

Quando o ChatGPT estourou, no final de 2022, vazamentos davam conta de que o Google não cogitava seguir o mesmo caminho pelo receio de danos à sua reputação. Afinal, as IAs gerativas cometem equívocos e “alucinam”, o termo adotado para resumir as maluquices que o ChatGPT às vezes solta. Não são confiáveis, o que, para uma empresa cujo propósito é (em tese) organizar todo o conhecimento da humanidade, é um pecado capital.

O sucesso repentino do ChatGPT se deve, em muito, ao fato de que a OpenAI não tem muito a perder, ao contrário do Google, e por isso pode lançar coisas perigosas. Não há um risco reputacional quando se é uma empresa nova.

Para vermos como são as coisas: a tecnologia-chave que viabiliza as IAs gerativas/grandes modelos de linguagem, chamada “transformer” (o “T” em “ChatGPT”), foi desenvolvida pelo Google, em um paper intitulado “Atenção é tudo de que você precisa”, publicado em 2017.

E agora?

Ao precipitar um novo mercado, a OpenAI colocou o Google em uma encruzilhada: manter a postura comedida e correr o risco de perder um mercado potencial incipiente (um em que o Google é líder em pesquisa e desenvolvimento!) e/ou ser visto como defasado, ou mover-se mais rápido sob o risco de gerar reações adversas, um risco que o anúncio atabalhoado do Bard provou ser real.

O processo antitruste aberto pelo DoJ e oito estados norte-americanos, por óbvio, não ajuda, e chega em um momento crítico.

Para escrever esta coluna, consultei e me vali de informações presentes em Forbes e The Verge.

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