A degradação de qualidade do Twitter nos últimos meses tem sido, ao mesmo tempo, interessante e sofrível: embora seja fascinante ver um bilionário enterrando uma companhia pela qual pagou US$44 bilhões, ao mesmo tempo deixou milhões de usuários sedentos por uma rede social de texto com a qual possam contar.
A nova rede social da Meta, o Threads, veio para ocupar esse lugar de alternativa e, ao que parece, muitas pessoas estão adotando de braçada: a rede superou 100 milhões
de usuários em menos de uma semana (claro, muito porque o app é conectado ao Instagram). Nostr, Mastodon ou Bluesky – quaisquer que sejam seus méritos – não conseguem ter volume remotamente semelhante.
Com seus milhares de engenheiros, se tem uma coisa que a Meta sabe fazer é construir redes sociais, enquanto, por exemplo, o Bluesky tem uma equipe inicial de menos de 10 pessoas.
Bom poder contar com várias alternativas para escolher, certo? E se for de uma empresa que sabe o que faz, melhor ainda, não?
Não é bem assim: com o Threads, a Meta fechou um círculo de produtos de redes sociais que a coloca numa posição de dominância.
Nos produtos da empresa você pode mandar mensagens criptografadas e ficar em contato com seus grupos (via WhatsApp), publicar fotos e vídeos curtos (Instagram), basicamente tuitar (Threads) e fazer seja lá o que as pessoas fazem no Facebook atualmente.
Claro, TikTok é uma ameaça à dominância absoluta da Meta em redes sociais, mas o Facebook tem 3 bilhões de usuários ativos em suas plataformas, alguma dominância já está estabelecida.
Só que agora a Meta corre para se posicionar no topo de mais uma modalidade de redes sociais – baseada em facilidade de compartilhamento e dinâmica de debates (significativamente diferente do Facebook). E tudo indica que ela também vai entrar no mercado de chatbots de inteligência artificial pra concorrer com Google e OpenAI/Microsoft.
Correr para o Threads é dar mais poder para uma empresa reconhecidamente exploradora de dados.
A Meta explora tanto nossos dados que sua ferramenta de rastreamento, o Pixel, é acusada pelo Congresso dos EUA de ter obtido dados sigilosos de imposto de renda de usuários. Esse é o nível.
É tanto dado que quando a Apple implementou medidas de privacidade para rastreamento de usuários de seus produtos, o Facebook perigou perder US$10 bilhões em receita de anunciantes em 2022 por causa disso.
A Meta tem um dos sistemas de anúncios mais sofisticados já feitos. O Threads, por ser construído em cima do Instagram, certamente terá acesso a esses sistemas com muita facilidade, fazendo com que a empresa possa rastrear seus usuários em várias plataformas diferentes.
Eu criei uma conta na Threads pra testar, mas não sei se é a melhor coisa ter uma empresa que predatoriamente explora nossos dados pessoais em mais uma rede social.
Numa eventual briga de jaula entre Elon Musk e Mark Zuckerberg, eu posso até torcer pro Zuck moer seu oponente na porrada (olha o físico do cara), mas em momento nenhum devemos nos iludir de que a Meta é a salvadora do formato do Twitter – ela só está se aproveitando do estrago causado por um bilionário para que outro ocupe seu lugar.
ALGUNS PROBLEMAS NO TWITTER
* Limitações de uso: o Twitter limitou o número de tweets que um perfil pode ver e chegou a exigir login para ver um tweet, o que prejudica muito a experiência de usuários. A desculpa é limitar raspagem de dados por inteligência artificial. Não faz sentido uma rede social cujo modelo de negócios depende anúncios limitar quantos posts um usuário por ler;
* Fim da API gratuita: isso limitou monitoramentos e apps terceiros que colaboraram para transformar o Twitter em uma rede amigável a desenvolvedores e produtos. Isso acabou;
* Moderação quase inexistente: de nazismo e apologia a crimes até pornografia explícita, o Twitter virou um jogo de vale tudo;
* Invasão dos selos azuis (pay for play): não tem um dia que eu entre no Twitter e minha timeline não seja tomada por selos azuis comprados tentando emplacar conteúdo sobre inteligência artificial, tá sofrível;
* Apagões intermitentes: vira e mexe o Twitter sofre problemas de infraestrutura que prejudicam o uso da plataforma. Isso pode acontecer em qualquer lugar, claro, mas tem sido mais frequente no Twitter;
* Elon Musk: ter um sujeito arbitrariamente mudando regras na plataforma ao sabor do momento não é algo que dê segurança e consistência em seu uso.