No YouTube, canais de caçadores vendem peças e cursos para montagem de armas de fogo

Prática vai contra política de conteúdo da plataforma, além de ser potencialmente ilegal. YouTube removeu +100 vídeos irregulares após contato do Núcleo.
Um mosaico vermelho com diversos desenhos de armas sendo construídas
Arte por Rodolfo Almeida/Núcleo
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O YouTube, maior plataforma de vídeos do mundo, virou palco para a venda de peças, cursos e guias para fabricação ou montagem de armas de fogo, com diversos canais de caçadores promovendo práticas potencialmente ilegais com pouca moderação proativa da plataforma — apesar de ir contra sua política de conteúdo.

Uma investigação do Núcleo descobriu ao menos cinco canais na plataforma, com centenas de vídeos e até 40 mil inscritos, que ensinam como montar armas de fogo ou vendem acessórios para isso. Os canais apurados são: Arte da Sobrevivência, Caçador do Nordeste, O Predador 22lr, Varão Caçador e O Mestre.

Um traço em comum entre esses canais é que são mantidos por pessoas moradores de áreas rurais, que parecem possuir um interesse genuíno em trocar conhecimento sobre armamentos, caça e construções artesanais, e não apenas hitar nas redes ou ser grandes influenciadores.

No entanto, muitos dos vídeos violam diversas regras do YouTube para armas de fogo, além de estarem sem restrição de idade. Além disso, o Núcleo apurou que esses vídeos circulavam entre conversas em fóruns online utilizados para assédio direcionado contra pessoas e instituições.

Em 2008, a Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara aprovou uma proposta que tornou ilegal a fabricação de armas de fogo, acessórios e munições sem autorização ou em violação das leis e regulamentos vigentes.


É importante porque...

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Prática é contra a própria política de conteúdos do YouTube, e circula em fóruns na internet que promovem assédio direcionado


O YouTube retirou do ar pelo menos 100 vídeos após questionamentos do Núcleo, enquanto outro vídeo foi retirado do ar pelo próprio criador. A plataforma, porém, não respondeu a outras perguntas da reportagem (mais sobre isso abaixo).

A política de conteúdo da plataforma expressamente proíbe a criação de vídeos com o propósito de vender armas de fogo, instruir os espectadores sobre como produzir armas de fogo, munições e acessórios relacionados ou ensinar o público a instalar esses acessórios.

Além disso, o YouTube também proíbe transmissões ao vivo que mostrem uma pessoa segurando, manuseando ou transportando armas de fogo, com exceção de situações relacionadas a videogames.

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CONSTRUINDO ARMAS CASEIRAS

Alguns canais que ensinam a fabricação de armas caseiras foram encontrados inicialmente em fóruns anônimos na deepweb que estavam organizando “zoombombings”, conforme já reportado pelo Núcleo.

Vídeo com instrução para a fabricação de armas caseiras circulou sem moderação no YouTube até contato do Núcleo.

Em 19.agosto, usuários de um dos fóruns analisados começaram a compartilhar informações sobre a montagem de uma arma de calibre .22 do zero, mencionando vídeos no YouTube de criadores de conteúdo desse tipo.

Um usuário forneceu um guia completo com links do YouTube, abordando desde o funcionamento do sistema de gatilho até a montagem de mecanismos específicos da arma e outras partes do processo, detalhadamente.

Um desses vídeos era do youtuber dono do canal “Arte da Sobrevivência”, que violou as regras da plataforma ao dar instruções minuciosas sobre como fabricar armas de fogo, peça por peça.

Após o Núcleo entrar em contato com a assessoria de imprensa brasileira do YouTube, a publicação foi removida. A reportagem não encontrou outros tutoriais desse criador de conteúdo na plataforma.

PROPAGANDA E VENDA

Alguns canais, no entanto, realizam propaganda direta de peças de armamentos. Por exemplo, o canal “Predador22lr”, com 40,2 mil inscritos, anunciava na descrição de seus vídeos a venda de remessas de canos com câmara já feita via Mercado Livre, embora essas postagens tenham sido retiradas pelo próprio canal.

Outro tipo de comércio presente nesses canais envolve a venda de guias ou gabaritos usados como moldes para montar armas caseiras. O canal “O Mestre”, com 20,7 mil inscritos, comercializou gabaritos feitos em PVC e disponibiliza seu telefone para contato direto com seguidores.

O mesmo ocorre no canal “Caçador do Nordeste”, com 25,7 mil inscritos, no qual o dono do canal pede que os seguidores entrem em contato via WhatsApp para obter acesso a um curso com mais de cinquenta vídeos e gabaritos de armas (guias que auxiliam na fabricação ou montagem de armas de fogo) em formato PDF.

É importante notar que as políticas do YouTube também proíbem conteúdos com objetivo de venda direta de armas de fogo, bem como links para sites que comercializem esses itens, incluindo acessórios.

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DRIBLANDO A MODERAÇÃO

Alguns canais, incluindo o canal “O Mestre”, relataram recentes problemas com o YouTube e solicitaram que seus seguidores os acompanhassem em outro canal com um nome semelhante. O proprietário do canal, que não revela sua identidade nos vídeos, afirmou que a plataforma aplicou dois strikes em seu canal devido a denúncias recentes.

No YouTube, um strike é um aviso preventivo da plataforma que é emitido quando ocorre uma infração menor, antes de a empresa tomar medidas mais graves, como a suspensão da monetização do criador de conteúdo ou a remoção completa da pessoa da plataforma.

O QUE DISSE O YOUTUBE

O Núcleo enviou três perguntas ao YouTube. Compartilhamos com a assessoria de imprensa brasileiras alguns dos vídeos identificados.

Perguntas que fizemos ao YouTube na íntegra

1 - Os canais citados violam as diretrizes ao ensinar a montar e vender peças e gabaritos de armas?

2 - Quais as ações práticas que o Youtube vem tomando no Brasil para controlar a criação e disseminação de conteúdo similar?

3 - Muitos desses vídeos são feitos por amadores, que criam armas de disparo único e feitas majoritariamente para caçadores e entusiastas com algum conhecimento técnico e artesanal. Existe espaço nas diretrizes para considerar esse tipo de conteúdo como apto para a plataforma?

Resposta do Youtube

“As políticas da comunidade do YouTube definem o que pode ou não ser compartilhado na plataforma. Não permitimos, por exemplo, material que incentive atividades perigosas ou ilegais. Após análise dos canais denunciados pelo Núcleo Jornalismo, removemos mais de 100 vídeos da plataforma por infringirem nossas regras relacionadas a armas de fogo, e os canais foram penalizados de acordo com nosso Sistema de Avisos. Quando avaliamos esse tipo de conteúdo, levamos em conta diversos fatores, como o risco imediato de ferimentos graves ou morte, se os indivíduos envolvidos são profissionais treinados, se o conteúdo é respaldado por informações educacionais ou documentais adequadas, entre outros. Seguimos vigilantes para manter o YouTube uma plataforma segura para nossa comunidade.”

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O QUE DIZEM ESPECIALISTAS

Ao Núcleo, Francisco Brito Cruz, diretor do Internet Lab, comentou que os vídeos, em sua opinião, potencialmente violavam as políticas do YouTube, mas que essa era uma discussão mais profunda do que parece à primeira vista.

Usando como exemplo o Relatório de Transparência da própria plataforma, Brito contextualizou que os dados disponibilizados pelo YouTube são insuficientes para entender de forma sistêmica o tamanho do problema.

“A gente não sabe se as táticas utilizadas estão sendo efetivas porque a falta de transparência faz com que a gente não saiba avaliar se os números divulgados por eles é pouco ou é muito”.

Já Bruno Langeani, gerente de projetos do Sou da Paz, disse que existem casos documentados de massacres em escolas onde menores de idade conseguiram em redes sociais abertas encontrarem vendedores de armas e munições.

“Em geral, as regras de moderação de conteúdo de redes sociais são muito negligentes e tem permitido conteúdos de instrução de construção de armas, mas também de tiro, consumidas inclusive por menores de idade e criminosos”, disse Langeani.

Em sua leitura, a fabricação e comercialização de itens relacionados a armas de fogo, pode gerar enquadramento no artigo 17 da lei 10.826/2003, com pena de 6 a 12 anos. “Nos outros casos onde não há venda, mas só instrução pode haver enquadramento em outros tipos penais como incitação ao crime ou apologia, com penas menores de 3 a 6 meses de detenção”.

“Alguns destes autores fazem 'avisos' de que o material é educativo, ou que é crime fabricar armas, mas juridicamente estes avisos não os protegem em nada”.

Sobre soluções para impedir a disseminação desse tipo de conteúdo nas plataformas digitais, Langeani afirmou que, após o enfraquecimento da discussão sobre o PL2630 para regulamentar as redes sociais, “há poucas perspectivas de que as plataformas voluntariamente melhorem a remoção desses conteúdos criminosos.”

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Reportagem Leonardo Coelho e Sofia Schurig
Arte Rodolfo Almeida
Edição Sérgio Spagnuolo

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