No dia da eleição brasileira, a desinformação prosperou – patrocinada pelo Google

Estratégia de sugerir links de parceiros como Jovem Pan ajudou a espalhar Fake News, argumentam pesquisadoras
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Reportagem Nina da Hora, Yasmin Curzi

Essa reportagem foi originalmente publicada pela Agência Pública e faz parte do Sentinela Eleitoral, projeto que investiga e analisa as redes de manipulação do debate público (fake news) nas eleições em parceria com o Berkman Klein Center for Internet & Society da Universidade de Harvard.


A despeito de serem privadas, as plataformas de redes sociais se tornaram o principal meio de informação e comunicação em todo o mundo, necessárias para atividades cotidianas e até mesmo para acessar serviços públicos.

Isso marca outro tipo de concentração de toda essa nova infraestrutura de comunicação por parte de poucos atores. Em particular Google e Meta são os principais entes que governam o discurso público e o fluxo de informações, de acordo com seus interesses, muitas vezes dissimulados pela recomendação e opacidade “algorítmica”.

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As primeiras eleições gerais após a pandemia de Covid-19 no Brasil ocorreram no último domingo (2.ou.22) e foram fortemente marcadas pela disputa entre o atual presidente Jair Bolsonaro (PL) e o ex-presidente Lula (PT). A desinformação teve um papel significativo na eleição de Bolsonaro em 2018: conteúdos ultrajantes e teorias conspiratórias foram massivamente disseminadas nas redes sociais, especialmente no WhatsApp.

Os posts tratavam principalmente da facada de Bolsonaro por Adélio Bispo que, de acordo com tais notícias falsas, seria ligado ao Partido dos Trabalhadores (PT), e da distribuição de um “Kit Gay” contendo a infame mamadeira “erótica” nas escolas, pelo Ministério da Educação durante o mandato de Haddad, no governo do Partido dos Trabalhadores.

Por mais absurdo que possa parecer, essas campanhas desinformativas tinham o objetivo de apelar para os setores conservador e religiosos, já predispostos a acreditar em notícias alarmantes sobre o PT, favorecendo a vitória de Bolsonaro em 2018.

A desconfiança na mídia tradicional também alimentou o caminho do Brasil nos últimos anos. Jair Bolsonaro, como outros populistas de extrema-direita, pressiona seus seguidores a acreditar que instituições “corruptas” e “a mídia” estão contra ele – colocando-se como outsider, a despeito de figurar como parlamentar por mais de 25 anos.

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Seus constantes ataques às instituições e à imprensa foram fundamentais para a legitimação do crescimento da violência contra jornalistas e pesquisadores por seus eleitores.

A desinformação também tem sido instrumento persistente durante o mandato de Bolsonaro. Durante a pandemia, usando o mesmo manual de outros líderes de extrema-direita para se firmar perante o eleitorado conservador e religioso, Bolsonaro empurrou a agenda anti-ciência, com discursos de negação à pandemia, em favor da administração da hidroxicloroquina e de vermífugos enquanto curas para o COVID-19 (apoiado por médicos de extrema-direita); posicionou-se contra e obstaculizou a vacinação; e até colocou os certificados de vacinação dele e de seus parentes sob sigilo.

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Ao ver que a imunização era aceita pela maioria da população e que seus discursos anti-vacina estavam falhando, Bolsonaro começou a afirmar que nunca foi contra a vacinação e que sua administração comprou as vacinas. Esse caso ilustra como Bolsonaro articula a sua presença na mídia: tem posicionamentos polêmicos os quais afirma, posteriormente, ser parte dos ataques de fake news da “grande mídia” contra ele.

E, a despeito da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) conduzida pelo Senado apresentar como conclusão que ele propositalmente atrasou e dificultou os contratos com os vendedores de vacina, além de ele e seus Ministros terem compartilhado desinformação anti-vacina (como a imunidade de rebanho ou seus possíveis efeitos colaterais adversos), durante as eleições, o discurso de seu posicionamento pró-vacinação tem sido amplamente compartilhado por seu eleitorado.

Há três eixos principais sobre os quais a cruzada de Bolsonaro é fundada e que alimentam sua campanha de desinformação: primeiro, o conservadorismo moral, mirando principalmente o fundamentalismo cristão; segundo, o “antipetismo” e anticomunismo, mirando setores da classe média e elite; e, terceiro, a anti-institucionalidade, mirando setores anti-democráticos, da classe média conservadora, pró-intervenção militar, a neonazistas.

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Nesse sentido, sua campanha de 2022 armou as redes sociais, respectivamente: primeiro, contando com o apoio de sua esposa, para aparecer como um messias enviado por Deus para derrubar as “influências maléficas” da ala da esquerda e governar o país dentro das crenças cristãs, até mesmo disseminando desinformação que liga Lula a práticas satânicas; segundo, para afirmar que o PT estabelecerá o comunismo no Brasil; e, terceiro, para alimentar teorias conspiratórias de que as instituições, incluindo a imprensa, o sistema eleitoral – e também as Big Techs que aplicam moderação de conteúdo as suas redes sociais – estão profundamente corrompidas e querem o seu ostracismo porque ele as desafia.

O papel das plataformas

Diante da enxurrada de desinformação que tomou as redes sociais em 2018, para este ano o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) firmou acordos com as principais empresas de redes sociais do Brasil (TikTok, Kwai, Google, Meta e Telegram) para coibir a desinformação durante as eleições brasileiras.

As plataformas estariam comprometidas em desenvolver canais de denúncia, implementar mecanismos para combate à desinformação, especialmente aquelas que ameaçam a integridade do processo eleitoral, e promover “fontes oficiais”.

No entanto, vários casos têm demonstrado que tais esforços têm sido em vão ou insuficientes para lidar com a escala da desinformação no país. Na verdade, a última medida – a promoção de “fontes oficiais” – pelo Google, obliterou esforços para combater conteúdo falso no YouTube. O programa consiste em recomendações de conteúdo dos “parceiros” do Google, ou seja, de instituições e canais aprovados pelo Google como tais.

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Apesar das boas intenções, a aprovação da Jovem Pan, canal com composição e agenda primária de extrema-direita, como um de seus parceiros, favoreceu tanto a candidatura de Bolsonaro como a recomendação de vídeos com conteúdo fraudulento, de autoria da empresa.

Para dar uma dimensão a essa questão, conforme afirmado pela agência de checagem de fatos Aos Fatos, no dia da eleição, a Jovem Pan estava divulgando um áudio falso em que o traficante Marcola declara apoio a eleição de Lula. O ministro Alexandre de Moraes, atualmente presidente do Tribunal Superior Eleitoral, ordenou a remoção desse conteúdo, mas não antes de a postagem já ter atingido 1,75 milhão de visualizações. Os apoiadores também compartilharam esse vídeo em pelo menos 38 grupos de WhatsApp e Telegram monitorados pela Aos Fatos.

Um mês antes, no dia 2 de setembro, em evento com representantes da sociedade civil e acadêmicos, os representantes do YouTube Brasil apresentaram suas iniciativas dentro da parceria com o TSE.

Quando questionados sobre como a empresa estava lidando com a disseminação da desinformação por parte de empresas consideradas “fontes oficiais”, especificamente da Jovem Pan, os representantes disseram que removeriam conteúdos, independentemente do programa de parceria, se estes violassem suas políticas comunitárias.

No entanto, a divulgação e intensa recomendação do áudio falso de Marcola traz um panorama de como tal solução foi insuficiente para lidar adequadamente com a desinformação na plataforma.

A iniciativa de recomendar mais conteúdos de quem a plataforma considera como “fonte oficial”, portanto, longe de atingir o objetivo inicial, pode ter agravado o cenário. Além disso, como monitorado pelo Núcleo Jornalismo, a desinformação relacionada à fraude eleitoral após 2 de outubro estava em alta no Telegram e no YouTube – mesmo com os resultados relativamente bons da extrema-direita.

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Combater desinformação com “mais verdade” não basta

O ceticismo em relação às ações voluntárias das plataformas para coibir conteúdo nocivo é justificado, uma vez que as Big Techs ainda lucram com a recomendação de conteúdos ultrajantes – que, como mostram os pesquisadores do departamento de psicologia social de Yale, William Brady e Molly Crockett, produzem mais engajamento.

Embora se representem como “bons samaritanos” que visam implementar medidas esclarecidas, eles ainda não fornecem informações precisas sobre moderação de conteúdo e recomendação algorítmica de conteúdo ultrajante e malicioso.

Por exemplo, o Google negou aos jornalistas brasileiros até mesmo dados quantitativos sobre sua equipe de moderação de conteúdo de língua portuguesa.

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Nesse sentido, normas significativas de transparência são totalmente necessárias para o devido escrutínio das informações por estudiosos e organizações da sociedade civil que poderiam se associar efetivamente no enfrentamento da desinformação.

Outro fator crítico na guerra das narrativas no Brasil é a manipulação audiovisual ou tecnologias de deep fakes. Durante as eleições brasileiras, a jornalista Renata Vasconcellos foi a primeira vítima de sua implantação, tendo um vídeo manipulado para fazer parecer que Bolsonaro estava liderando a corrida presidencial.

Deep fakes afetam profundamente as atividades de jornalistas, ativistas e políticos. Essencialmente, transforma seus rostos, corpos e vozes em “armas”, potencialmente gerando uma sensação de falta de controle de suas representações perante terceiros, até mesmo afetando suas relações privadas.

As várias questões que circundam essa tecnologia estão fora do escopo deste artigo, mas é relevante ressaltar que ela gera ainda mais condições para o ecossistema de desinformação e que medidas urgentes são necessárias para enfrentá-la.

Algumas delas são políticas públicas para a educação digital e esforços mais incisivos das redes sociais para sinalizar, filtrar, remover e proibir tais conteúdos. No caso de Renata Vasconcellos, as plataformas não conseguiram remover todos os vídeos, que ainda são facilmente encontrados e compartilhados.

Outra comunicação é possível

Em seu célebre livro “Por uma Outra Globalização”, o geógrafo brasileiro Milton Santos concebeu a ideia de que a globalização possui três faces: pode ser lida como fábula, com a imprensa e governos exaltando o inevitável progresso do mundo; como perversidade, com maior impacto negativo a pessoas pobres e ao Sul Global; e, finalmente, como ela pode ser, uma outra globalização – com a democratização dos meios de comunicação, inclusão social e distribuição da riqueza.

No momento, é possível dizer que estamos em um estado intermediário. Desde a década de 2010, os movimentos sociais globais vêm aumentando, com um papel relevante para as redes sociais que possibilitaram a descentralização da comunicação em massa, tornando possível protestos democráticos e da sociedade civil em diversos países. No entanto, peças relevantes do xadrez humano ainda favorecem as elites do poder. Entre elas estão as Big Techs, que são proprietárias dessas infraestruturas de comunicação. A partir desta breve menção a Milton Santos, acreditamos que uma outra comunicação é possível.

Tendo em vista que a desinformação é uma questão social derivada da predisposição de grupos sociais brasileiros a acreditar em agendas conservadoras – contra o comunismo, a “ideologia de gênero” e as instituições tradicionais –, esforços para combatê-la com mais “verdade” podem surtir efeito, mas não ser uma “bala de prata”.

Não obstante, o papel das plataformas em sua disseminação – para fins lucrativos ou não – não deve ser deixado de lado.

Elas têm sido o principal ambiente para a participação em debates públicos e para os fluxos de informação – não apenas no período eleitoral.

No entanto, elas, sozinhas, são responsáveis por desenvolver as regras para o compartilhamento de conteúdo em seus termos de serviço e políticas de comunidade, são os juízes de conflitos entre usuários, e os executores de suas próprias leis – tudo sem o devido input democrático ou transparência que possam garantir sua legitimidade.

Dessa forma, com moderação de conteúdo e técnicas opacas, mediam disputas e governam discursos que podem impactar significativamente a democracia.

Nesse cenário, é bastante necessário que as plataformas estabeleçam medidas mais eficazes para a identificação e combate à desinformação, com mais parcerias com agências de checagem e moderadores locais, a fim de aprimorar a compreensão de contexto – sendo a detecção automatizada inócua em grande parte da moderação. Também é preciso assegurar mais informações e transparência sobre o funcionamento da moderação de conteúdo.

PL das Fake News incorpora ideias novas, mas deixa lacunas
Texto substituto ainda falha em pontos cruciais, como a auto-regulação das plataformas

A autorregulação do setor não tem se mostrado eficaz para tais fins. De tal modo, as instituições públicas precisam elaborar legislações com o fim de regulamentar devidamente suas atividades, seguindo o novo contexto de aumento de poder político e econômico destes atores, e em convergência com os desenvolvimentos internacionais sobre o assunto, como a lei europeia.

O Projeto de Lei 2.630/2020, conhecido como PL das Fake News, é a legislação mais avançada do Congresso Nacional, mas não possui mecanismos adequados para garantir transparência significativa. Nesse sentido, acreditamos que um modelo de corregulação – com o desenho de uma agência reguladora ou autarquia – seria mais adequado ao estabelecer deveres de cuidado, transparência significativa, condições de observabilidade e accountability e avaliação de risco dos algoritmos das plataformas que possuem poder excessivo.

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